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“Os mártires [da Comuna] estão guardados

como relíquias no grande coração da classe operária”– Karl Marx [A guerra civil na França]

– Quem é o chefe aqui?

– Não tem chefe, somos uma Comuna.

– Não sei o que é isso, mas preciso falar com alguém para que me explique essa algazarra.

Eles se amontoavam ao lado da parede do Père-Lachaise e não paravam de chegar. Eram muito diferentes dos mortos comuns que chegavam todos os dias. Falavam muito, riam e se abraçavam. Faziam discursos acalorados, discordavam uns dos outros, por vezes descambando para a força física, mesmo agora sem o físico, na imaterialidade etérea de seus espíritos.

– Fiquem calmos… mantenham-se em fila… pelo amor de deus, largue essa arma…

– Você está ao lado de Versalhes, canalha, capacho de Thiers!

– Quem? Não, não… represento o Reino de Deus…

– Capacho de Napoleão III…

Paris ardia em chamas, os cadáveres lotavam os campos e jardins, transformados em uma enorme sopa de lama e corpos em decomposição. O cheiro era insuportável. Um jornal conservador proclamava: “estes miseráveis que nos fizeram tanto mal em vida não podem continuar a fazê-lo depois da morte”.



Os mortos reagiam como podiam. Cheiravam, apodreciam, permaneciam incômodos como testemunhas do massacre. Mostravam seus crânios amassados pelas coronhadas, os tiros na nuca, os membros decepados. Mulheres tombadas ao lado de seus baldes de petróleo ou simplesmente por trazer um lenço vermelho preso ao braço ou ao pescoço.



Ao lado do muro do cemitério forma-se um enorme comício de almas desgarradas de seus corpos. O anjo, bastante assustado voltou com alguém que parecia ser seu superior, o guardião do portão, que com uma voz poderosa dirigiu-se a turba:



– O negócio é o seguinte. Vocês estão mortos, precisam ficar calmos para a próxima etapa. Sigam a luz e…



– Não.



– Como não?



– Decidimos em assembleia que vamos ficar aqui.



– Veja, não cabe a vocês decidirem…



– É o que sempre nos disseram, mas…



– As coisas do mundo ficaram para trás meu irmão, seus corpos se foram, tem que pensar em suas almas.

– Pois é, mas estávamos nessa de corpo e alma seu padre.



– Eu não sou padre.



– Cansamos de chefes, prefeitos, generais e esta gente que faz guerra para que os pobres morram. Você entende, eminência?

– Eu não sou…



– Certo, certo. Pessoal, o barba aqui quer falar com a gente, vamos ouvi-lo.



– Sou contra! Este cara veio com aquele guarda de Versalhes…

– Não sou guarda… eu…



– Certo, certo. A gente escuta ele e depois vota.



– Obrigado irmão. Eu entendo a revolta de vocês, mais ou menos, vem de um mundo de injustiças e violência, de privações da carne e desesperança. A morte é a passagem para uma outra dimensão…



– Que dimensão, o que tem lá?



– Ele disse que é um reino…

– Reino… monarquia?



– Capacho de Bismark!



– Não… não… essas são coisas do mundo dos homens…



– Por que? Nós mulheres não podemos entender de política. Sei muito bem a diferença entre Monarquia e República, meu senhor…



– Não, não… falei “homens” no sentido geral do termo…



– Vou te dar um tiro… bem no sentido geral do termo…



– Calma gente, deixa o barba concluir. Fala barba, você dizia de outra dimensão que é diferente desta merda de mundo. Como é lá?



– Como é lá? Veja bem… não sei… você tem que acreditar sem ver… a fé…



– É tramoia, o cara é padre…



– Eu não sou padre…



– O cara é protestante… tá do lado dos prussianos…



(Mauro Iasi) Texto integral no blog da Boitempo.