Me vejo gritando desde o poço que projetam teus braços, onde a luz me golpeia na cara. Compreendo que as coisas que iluminam tudo são capazes de cegar. Há algum tempo, desde que a escrita me feriu de morte com sua pena, tenho escutado um estranho latido regular e compassado dentro do peito, e não tinha a mínima ideia da sua origem. Não o identificava com algo singularmente estranho e desconhecido. O corpo era uma espécie de jaula e, dentro dela, havia algo que mirava, espreitava, esperava, escrutava, temia, pensava e amava. Escrever é um ato necessário, meu esconderijo azul recamado de paz assumida. Por vezes me pergunto como se remendam, como reorganizam suas estilhas os que não enfrentam as palavras, os silêncios, as soledades, a si mesmos, para escapar do tormento, do desatino, da tristura, do terror pânico inerente à condição humana. Há reminiscências que ferem como belos punhais no estômago. Pus minha corporeidade mortal e purpureada [onde o amor inventa seu infinito] em uma peanha, onde ninguém possa alcançar. Quando há demasiado e inominado dano, procuramos cuidado acima do habitual. A nós, que amamos plenamente com a alma, custa mais reconstruir, apontar desestima ante a mais minguada mostra de carinho. Não deixamos entrar qualquer. Ser assim se converte em um ato de sobrevivência. Tenho mais sonhos perdidos que dinheiro nos bolsos. Todos os dias falo comigo mesmo, sou instável e no amor sempre chego tarde [às vezes, nem chego]. Sempre levo comigo meu sorriso, não importa se, por dentro, estou feito em pedaços. Saio à rua com firmeza, ainda que no regresso desvaneça. É aqui, neste silêncio — neste verdugo (le bourreau, carrasco) — onde encontro minha fortaleza. Se tenho um coração é para que arda.
Prefácio Musical
Too Late [Mike Lazarev] (Fragmento)
Execução da Pena de Morte por Decapitação imposta ao Rei Luís XVI (França, 1793) [Fragmento]
Sequência do filme ‘La Révolution Française’ (1989)
[Les Films Ariane, Films A2, Laura Film]
Direção: Robert Enrico/Richard Heffron
Luís XVI: Jean-François Balmer
Trilha sonora principal
The Poet [Bruno Sanfilippo/Julian Kancepolski]
Intet Forbi [Jacob David]
Futari [Daigo Hanada]
Ichiru [Daigo Hanada]
Ostinato Finale
Kväll [Peter Sandberg] (Fragmento)
Posfácio
Os olhos também mentem (recitado)
Prelude [Mike Lazarev] (trilha sonora secundária)
Obra da capa
Nicolas-Antoine Taunay, ‘Le triomphe de la guillotine’, óleo sobre tela, 129×168 cm, 1795-1799.