Este trecho do romance Cacau revela a potência da prosa do subestimado Jorge Amado. Cacau é seu segundo romance e deveria, sem dúvida alguma, ser mais lido.
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Saltei em Ilhéus com dezesseis mil e quatrocentos, uma pequena trouxa de roupa e uma grande esperança não sei mesmo de quê.
Um carregador me informou que pensão para quem pro-. cura trabalho só na Ilha das Cobras, aglomerado de ruelas que se escondia no fim da cidade pequena e movimentada. E até me recomendou a casa de d. Coleta, onde o sarapatel era suculento. Era suculento de verdade. Mas por ele e pela cama em que dormia eu pagava diariamente dois mil-réis. Passei quinze dias na pensão de d. Coleta. Já devia catorze mil-réis e ela fez-me ver que tinha sido muito condescendente comigo, que eu pelo menos deixasse o quarto e a bóia para outro hóspede que pudesse pagar. Ela era pobre e não podia...
Peguei a minha trouxa e saí. O cacau nesse ano começara a cair e não estava muito fácil arranjar trabalho. Eu batera em várias portas sem resultado.
– Não há serviço.
A resposta dançava junto dos meus ouvidos. No dia em que saí da pensão de d. Coleta andei atrás de serviço. Os coronéis recusavam. A safra ainda não começara e havia fartura de trabalhadores. E olhavam para mim como para um inimigo que os fosse roubar.
Fiquei parado em frente ao porto. Um navio transpunha a barra rumo à Capital. Um relógio de uma casa comercial badalou quatro horas. Apesar de tudo eu não sentia fome. Sentia ódio de todos. Andei ao léu o resto da tarde. Os homens passavam para suas casas carregados de embrulhos. Então comecei a sentir fome. Assim como uma legião de ratos a me roer o estômago. Uma coisa esquisita que me dava vontade de chorar e furtar.
A noite cobria a cidade. Ficou apenas o pisca-pisca das lâmpadas elétricas. Detive-me junto a uma padaria. Molecotes e empregados entravam e saíam com embrulhos de pães e biscoitos. Eu entrei também. E quedei-me olhando o imenso monte de pão que subia pela parede até tocar na imagem de São José, padroeiro da “Pastelaria X do Problema”. Pensei em Jesus multiplicando os pães, mas logo depois não via mais Jesus. Via a fome. A fome com os cabelos de Jesus e os seus olhos suaves. A fome multiplicava os pães, enchia a pastelaria toda, deixando um canto apenas para o empregado. Após multiplicar, dividia. A fome tinha agora um manto de juiz e a mesma expressão terna de Jesus. E dava os pães todos aos ricos, que entravam em procissão com notas de cem mil-réis nos dedos com anéis e mostrava um grande pedaço de língua aos pobres, que na porta estendiam os braços secos. Mas os pobres invadiam a “X do Problema”, derrubavam a imagem da fome e levavam os pães. Fui entrando com eles. Mas o empregado deteve-me:
– O que é que quer?
Passei a mão pela testa. O suor corria. Os ratos, no meu estômago, roíam, roíam... Olhei e vi que os pães e o São José continuavam no fundo da padaria. Murmurei para o empregado que se dispunha a chamar o guarda:
– Me desculpe. Não quero nada, não.
Os criados entravam com dinheiro e saíam com pão.