A escritora Francine Cruz lê a crônica "Ana", de sua autoria presente na Antologia "Parem as Máquinas" do selo Off Flip, 2020.
Ana Para Ana Cristina Cesar, in memoriam
Ana era uma cigana doidivana. Desde criança, peralta, saltava de um lado para o outro declamando aos metros versos longos e sentidos. Depois virou profissional. Escrevia poemas, diários e cartas, muitas cartas. Era amiga dos carteiros que levavam seu coração impresso em cartões postais. A libertinagem da linguagem. Prosa que dá prêmio. Piano no bordel. Gertrude e Catarina, Gil e Mary, Clara e Heloísa. Era fiel aos acontecimentos biográficos. Mais do que fiel, oh, tão presa! Nos cadernos terapêuticos contava sua grande história passional, guardada a sete chaves pela mulher mais discreta do mundo. Loura donzela, adorava enigmas e que nós, que habitamos a mesma casa, caçássemos palavras como ela. “É inútil manobrar a lupa da adivinhação”, dizia, e, apesar do nosso esforço, era sempre ela quem admitia vitória. Gostava de cinema, literatura, música. Papai Noel e os marcianos, Billy the Kid versus Drácula, Daydream. Poe, Joyce, Bandeira. Jazz, blues e um pouco de samba canção. Se a vida imita a arte ou a arte imita a vida, pouco importa, tudo entrava pelos seus poros e saía em sangue e lágrimas no papel. O sentimento do mundo. Nunca se sabia o que Ana queria, um dia era tudo cor de rosa, no outro, puro açúcar e blue. Se hoje caia na rua com Caio chutando pedrinhas na calçada, amanhã ia em quarta marcha no carro em fogo pela capital. Menina séria de olhos ciumentos, Ana não ia gostar desse texto mequetrefe, ou talvez sim, boa samaritana. Tesão do talvez. As aparências desenganam e amá-la é amar suas contradições, antíteses e paradoxos. Inundada pela arte que não cabia mais em si, Ana um dia desistiu de afundar navios e saltou para alcançar o céu. Azul, azul que não a espanta: wide sargasso sea. A história (nunca) está completa e me jogo aos teus pés, inteiramente grata.
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