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Uma das perguntas que mais gosto de fazer para casais de amigos é: como vocês se conheceram? 

É tão gostoso ver as versões do primeiro encontro se sobrepondo e se combinando. Um diz: não, lembra disso! E o outro: aí também teve esse detalhe. Adoro! Nas palavras sábias de Antônio Cícero: é o charme do mundo.

E eu adoro um charme, especialmente hoje.

Aqui é dia dos namorados (Londres). Os restaurantes já estão vendendo seus menus "românticos" há meses. Toda uma mise-en-scene. Temos de tudo. Programas, atividades, paisagens etc. Um mundo de possibilidades (marqueteiras e outras nem tanto) para celebrar o amor. 

E o show continua por todos os cantos, até o topo do google já me lembrou disso. #carinhadeassombro Definitivamente, este é o dia de ostentar a sorte de se ter um certo alguém nesse mundo. 

Mas nem todos estão namorando, correto? Há quem esteja se separando. Solteiros, viúvas, na arena, fugindo de relacionamento. 

Então, como, independente do status afetivo, trabalhamos essa fantasia "meio disneylândia" chamada Valentine's day?

Ah, minha gente, aí é tipo "Feira de Acari". 

"Tem de tudo. É um mistério!" 

Cada um ritualizando seu valentine's de um jeito bem específico e ao mesmo tempo parecido com o vizinho. Maravilhas da sociedade de massa, certo? 

Tem gente que vai fazer montagem da celebração do relacionamento no Instagram. Gente que fará declaração de amor ou de ódio no twitter. Os que irão se anestesiar (isso vai ter um monte) e sair pela noite iluminada. Ou ainda os que terão uma boa DR antes de ir para cama ou os que só vão para cama e pronto! 

Isso me fez pensar na diversidade dos meus "dia dos namorados" do passado. Os meus quarenta e tantos anos foram bem "Feira de Acari" nesse sentido. 

"Chama o síndico, Rapha!" 

Eu fico rindo agora, mas parecia uma novela. "Deu no New York Times: a Feira de Acari é um sucesso!" (pero no mucho). 

Tive jantar com peguete em lugar tosco. Date dorminhoco. Jesulia! Só de lembrar. Já passei a noite rodando o Rio de Janeiro com um indivíduo que achava que nada era bom o suficiente, arranjando problema com tudo. Já descobri que não estava em relacionamento monogâmico durante um dos meus valentine's

Mas nem tudo foi um pesadelo. Tive uns dates legais, com direito à encenação (bem londrino e nem sabia). Mas na maioria, passei sozinha mesmo. Eu comigo e eu mesma. Uma festa. 

São esses que, ironicamente, lembro com mais carinho. 

O fato de que (em teoria) todos estão simultaneamente celebrando algo cria uma atmosfera única. E, por mais que se tente escapar ou fingir que não tem nada acontecendo, o melhor é refletir um pouco sobre o tema. 

"Ficar neutro é político" até quando falamos de relacionamento ;)

Refletir, digerir, é a minha opção. E faço isso com o Carnaval, Natal etc. É muito bombardeio midiático para circular por aí incólume. 

Por isso, eu lembro com carinho dos meus valentine’s sozinha. Ali, a oportunidade de ponderar, apresentava-se com mais facilidade. 

O hábito ficou para vida. Mesmo quando os relacionamentos vão bem (ou nem tanto), é bom separar um tempo para pensar no tema de uma maneira mais dissociada. 

Eu explico.

Digo isso porque percebo que o simples fato de estar enamorado, somado à fantasia de completude e de parcerias perfeitas, pode confundir um pouco a gente. É preciso estar alerta.

Pode ser muito atraente se entreter com a miragem "disneylandianesca". Primeiros encontros, dias dos namorados, casamento, bodas, tudo são cápsulas do melhor em algo fugaz chamado relacionamento. 

Aí, investimos tesão demais na criação dessas pequenas cápsulas de amor, e esquecemos de todo resto que as sustentam e que, de alguma forma, dá o tal do charme a coisa toda.

Deixa eu dar um triplo carpado cinematográfico, criar um mundo cor-de-rosa, fazer declaração, aí não preciso olhar para o que não quero

Vamos ver muito disso hoje na timeline londrina. Te garanto!

"Meu parceiro/a, meu amor, como é maravilhoso estar com você. Ter você! Brincar com você!" 

É tipo "show da Xuxa", sabe? Eu aqui do outro lado penso: é fofo, é bonitinho, mas não dá para ao menos apontar vez ou outra para o desagradável por trás desse amor tão lindo e completo? Só apontar. Uma sugestão, um cheiro de humanidade? Esse desagrado é tão fundamental. Não invalida, ao contrário, dá substância a esta maravilha que é querer estar com alguém. Um lembrete eficaz de que nós somos indivíduos "a parte", mesmo que em uma relação. 

Você pode estar pensando: aff, Rapha, todo mundo sabe que não é tudo perfeito. Pois é, mas muita gente não. E, vou te dizer, esse bombardeio marqueteiro foi desenhado para a gente esquecer. Basta um pulo para nos perdermos na ritualização dessa miragem de uma maneira destrutiva e infantil. 

É muito fácil. 

É tentador.

É corrosivo a longo prazo, 

mas dá satisfação no curto.

E digo mais, todo mundo, sem exceção, vai se perder um pouco nessa disneylândia em algum momento. A nossa sociedade e nosso tempo querem que a gente fique no parquinho. Sozinho e/ou acompanhado.

Então o meu convite é para que, independente do status afetivo, usemos esse dia para fazer perguntas desagradáveis. 

Do tipo: onde está o meu desejo nesse enamoramento? Onde está minha escolha? E a minha responsabilidade em tudo que digo sim e não? Melhor ainda, onde está o desejo do outro? Bem além da minha fantasia: quem é esse outro que amo? 

Difícil essa coisa de não querer achatar o parceiro nas nossas expectativas, de não culpá-lo por tudo que não somos ou queremos, não é mesmo? 

É aí que gosto de lembrar dos meus valentines sozinha. Fui bem esperta, viu? Olhando em retrospectiva, claro. Me dá até um orgulhinho. Tive atitude de recolhimento e gostava de inventar os meus próprios rituais para criar espaço para o ócio e a angústia. Um filme, uma música, um momento. Criar espaços para o desconforto. Já naquela época não tinha expectativas infantis do "ser feliz comigo mesma". Estar sozinha é tão incômodo quanto estar acompanhada. Diferente, mas igual. É que existir às vezes é um incômodo, principalmente em datas comemorativas. 



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