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Essa semana fui ao meu primeiro funeral em terras britânicas. Um dia ensolarado, florido, daqueles em que a gente sente vontade de sair correndo de braços abertos pela cidade, cantando e torcendo para não ter uma crise alérgica no meio das cerejeiras e glicínias. 

Mas, eu não fui desbravar a cidade. Fui parar lá em Guilford - longe pra cacete, porém bela e bucólica -, numa igreja protestante da década de 1960 no alto de uma colina. Como cresci assistindo "Quatro Casamentos e Um Funeral" sazonalmente, a experiência não foi lá tão má. Foi no mínimo uma oportunidade comparar uma experiência inglesa com a minha história. 

Decidi, então, caminhar pela minha memory lane até chegar nos fundos do meu tempo no Brasil. Lá, eu tinha uma verdadeira aversão aos funerais. Não pelos motivos que talvez você esteja supondo: lágrimas, tristeza, dor. Meu problema sempre era a falta de senso estético, de decoro, a atmosfera de banheiro público/repartição e, em especial, os abutres da morte. 

Você já viu o preço de um arranjo de cravo horroroso? Eu vi. Uma facada (#contémironia)! E um caixão? Ah, e você tem que escolher tudo no dia. Porque o Rio é quente, e o que a gente faz com o/a falecido/a apodrecendo em ritmo acelerado? Não existe espaço para choque ou dor quando os abutres chegam. 

Nada de velar o corpo durante dias também. O Rio não é nada medieval neste quesito. Tudo rapidex. Até porque tem aquele odor que paira no ar de flor velha com terra seca que ninguém aguenta. É uma fragrância bem particular de fuja daqui agora… Deus me Livre! Eu quero correr dessa cena certamente. 

Quando meu pai faleceu, decidi que não iria mais em funerais. As minhas amigas tentaram, em vão, me convencer do quanto poderia me arrepender no futuro. Mas eu estava determinada. Conversei com meu irmão. Ele era a única pessoa que poderia me fazer mudar de ideia, e apoiou a minha decisão. Basta. Fiquei em casa di bobs. Depois de quatro anos de idas e vindas e noites mal dormidas nos hospitais, não fui receber as solenidades de ninguém. Tenho certeza que meu pai endossou a rebeldia.

De volta a colina de Guilford, lá estava eu, doze anos depois, no meio do funeral de um homem que não conheci. Sendo apresentada aos colegas de trabalho do Martin, no susto e numa tarde de primavera. Prazer, Raphaella!

A igreja era de fato colossal. Nós contamos 600 pessoas. Acho que se no meu funeral tiverem 10 pessoas, vai ser muito. Quero ser cremada, jogada num pé de tomate e que meus amigos me jantem. Sou antropofágica por vocação. Esse não foi o desejo do moço amado no entanto. 

Tinha tanta beleza ali. Tanta civilidade e ritual. Estávamos bem longe dos funerais cariocas. Nada de cheiro de flor ou terra seca. Alguns casacos da Uniqlo, mas a maioria de terno ou vestido preto. Nem preciso dizer que gostei do drama. Bem 4 casamentos. Decidi que não quero ninguém no meu funeral de outra cor que não seja preto, por favor. Drama, maestro!

O caixão entra na igreja ao som de Comodores - foi quando entendi que estávamos em um funeral protestante. Isso nunca aconteceria numa igreja católica. Muito pop, muito secular.

Começou o senta levanta tradicional das missas cristãs. A pastora falou (fiz gosto que fosse uma mulher), um coral cantou, um homem rezou. Até que chegou a vez da esposa subir ao púlpito para apresentar ao público aquele marido tão querido e amado. 

Ela estava calma e loira. Pegou sua garrafa de ecológica, tomou um lento gole de água e, durante 40 minutos, provocou lágrimas e risos sinceros em toda platéia. Aquele homem certamente foi muito querido e trouxe muito afeto a todos. 

A cerimônia foi linda, interessante… emocionante. Apenas um detalhe não batia para mim - a pessoa totalmente estranha naquele contexto. As histórias que a esposa contava me pareciam pavorosas. Elas suscitaram os sentimentos mais lindos no resto da audiência, mas eu não conseguia entender como. 

Ela começou contando sobre o nascimento do filho. Que marido divertido, ele me largou em trabalho de parto e foi comer no mcdonalds. Eu: oi?! Risos afetuosos na igreja. Ah, e quando ele levou o melhor amigo para lua-de-mel? Oh, fun! E quando disse que eu falava demais no trem e passou a comprar passagens com assentos separados para poder mexer no celular em paz. Mais risos calorosos. "Ou quando proclamou: quando casei com você não significava que queria passar tanto tempo assim contigo." Eu: Oi? Oi? Oi? Ela encerrou: Mas foi o homem mais gentil do mundo, amou o filho e sempre queria "cuddles" de noite (aka sexo). 

Era loucura minha ou o defunto amoroso era meio boy lixo? Todos contrariavam a minha impressão: Ah, fulaninho, foi tão especial, tão querido… eu estava totalmente atônita: ele era um verdadeiro fenômeno ou só estava vendo um resumo da vida de um homem branco privilegiado? 

Eu me senti desconcertada com a minha falta de decoro interna. Julgando o morto assim sem pudores. Bem carioca a moça aqui. Tendo esses pensamentos no meio do funeral. Acho que é o que acontece quando não estamos atrelados afetivamente com a situação.

Fato é que, de repente, o funeral britânico não me pareceu mais tão civilizado. Até agora não tenho resposta. A esposa estava tendo sua revanche final ali? Ou ela de fato achou que aqueles eram gestos de amor? Gente, ela começou o discurso dizendo: hoje eu vou contar um pouco sobre o "fulano" que vocês não conheceram, O MEU fulano, o meu marido. 

Tenso.

Uma doce bárbara trazendo um pouco de caos para aquele funeral perfeito e civilizado? Estou querendo acreditar que sim. Foi tanto decoro… mas, por um instante, juro que senti um cheiro de flor velha no ar. 

Imagem: Portrait of a Woman of the Hofer Family - Swabian



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