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Entre inspirações difusas, leituras, goles e um bj, boa leitura e bom fim de semana.

DONA NAIR

A novidade eram as pedras e as pauladas distribuídas entre as casas da vizinhança. A gritaria não era novidade.

– Mãe, chama a polícia.– Apaga a luz e vai ver se a porta dos fundos está trancada, minha filha.– Mãe…– Eu já disse que não queria ver você falando com este rapaz.– Não falei com ninguém. De onde você tirou isso?– Ele gritou seu nome.– Mãe, chama a polícia. Ele grita qualquer coisa.– Eu não vou chamar a polícia, sou amiga da Nair.

Moravam no Bairro do Céu, uma região da cidade com casas de família, minúsculos armazéns e gente. Muita gente.

Bairro do Céu não nasceu bairro. Nasceu como um conjunto de casas de madeira - com nome de autoridade esquecida, que ficavam depois do fim da linha 70, construídas como alternativa para os desalojados do Mangue do Sapinho, por alegadas razões de saúde pública.

Recém-casada, Dona Nair morava no Mangue. No anúncio da remoção, brincando com as promessas que acompanhavam a notícia da mudança compulsória de todos, dizia que ia passar sua segunda lua-de-mel, agora no céu. Anos mais tarde, na criação legal do bairro, o nome foi oficializado.

Casa nova, tempos de sol. Todos os dias, ela cuidava das rosas e esperava o marido chegar. Na vida que corre - às vezes chovia, chegou Pedro, chegou Maria, e o marido começou a tardar. Sozinha com dois filhos, nada de rosas. Nair foi trabalhar.

Na noite das pedras, Pedro apareceu à tardinha, beijou a mãe e perguntou pela irmã. Sentou, tomou café, comeu bolo, murmurou respostas, deitou no sofá e dormiu. 

De pé, encostada na porta entre a sala e a cozinha, olhando o filho de braços magros e roupas que não pareciam suas, Nair chorou e rezou em silêncio.

– “Pai, perdoa meu menino. Pai, ajuda meu menino.”

Quando Pedro acordou, pediu dinheiro três vezes. Sem receber resposta, aos gritos para que a mãe parasse de chorar, socou a parede e saiu de casa.

O surto das pauladas só aconteceu mais tarde, quando Pedro retornou. Durou até que chegasse a polícia.

Tudo isto faz dois anos.

Hoje, Dona Nair ainda trabalha e, à tardinha, já em casa, cuida das rosas:

– Elas precisam estar bonitas para quando o Pedro voltar.

Vitor Bertini

Olá.

Hoje é sexta e este papo, aqui no fim, abaixo da história, tem lá suas razões.

A primeira, é para demonstrar que minhas convicções não valem um tostão furado: sempre afirmo que um escritor (ora, ora) não deve explicar seus textos. Explicá-los seria uma espécie de traição à própria literatura.

A segunda, é que gosto do parágrafo que segue e não queria, de forma alguma, influenciar na leitura de ninguém.

A quebra em parágrafos e a pontuação devem ser feitas adequadamente, mas apenas pelo efeito sobre o leitor. Um conjunto de regras mortas não é bom. Um novo parágrafo é uma coisa maravilhosa. Ele lhe permite mudar tranquilamente de ritmo, e pode ser como um relâmpago que mostra a mesma paisagem sob um aspecto diferente.

Isaac Babel, em “Para Ler Como um Escritor”, Francine Prose, Zahar, 2008.

* Você conhece a Dona Nair? É outra. Esta, eu inventei;

* A ilustração da história de hoje é do pintor, ilustrador e designer gráfico checo, Alphonse Mucha (24/07/1860 - 14/07/1939);

* Sexta, dia 03 de setembro, tem mais;

* Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.



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