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Música: Duzão Mortimer
sobre poema de Carlos Drummond de Andrade1

O homem será feito
em laboratório.
Será tão perfeito
como no antigório.
Rirá como gente,
beberá cerveja
deliciadamente.

Caçará narceja
e bicho do mato.
Jogará no bicho,
tirará retrato
com o maior capricho.

Usará bermuda
e gola roulée.
Queimará arruda
indo ao canjerê,
e do não-objeto
fará escultura.
Será neoconcreto
se houver censura.
Ganhará dinheiro
e muitos diplomas,
fino cavalheiro
em noventa idiomas.

Chegará a Marte
em seu cavalinho
de ir a toda parte
mesmo sem caminho.

O homem será feito
em laboratório
muito mais perfeito
do que no antigório.

Dispensa-se amor,
ternura ou desejo.
Seja como for
(até num bocejo)
salta da retorta
um senhor garoto.
Vai abrindo a porta
com riso maroto:

«Nove meses, eu?
Nem nove minutos.»

Quem já concebeu
melhores produtos?
A dor não preside
sua gestação.
Seu nascer elide
o sonho e a aflição.

Nascerá bonito?
Corpo bem talhado?
Claro: não é mito,
é planificado.

Nele, tudo exato,
medido, bem posto:
o justo formato,
o standard do rosto.

Duzentos modelos,
todos atraentes.
(Escolher, ao vê-los,
nossos descendentes.)

Quer um sábio? Peça.
Ministro? Encomende.
Uma ficha impressa
a todos atende.

Perdão: acabou-se
a época dos pais.
Quem comia doce
já não come mais.
Não chame de filho
este ser diverso
que pisa o ladrilho
de outro universo.
Sua independência
é total: sem marca
de família, vence
a lei do patriarca.
Liberto da herança
de sangue ou de afecto,
desconhece a aliança
de avô com seu neto.

Pai: macromolécula;
mãe: tubo de ensaio,
e, per omnia secula,
livre, papagaio,

sem memória e sexo,
feliz, por que não?
pois rompeu o nexo
da velha Criação,

eis que o homem feito
em laboratório
sem qualquer defeito
como no antigório,
acabou com o Homem
Bem feito.

1. Este poema faz parte do livro “Obra Poética de Carlos Drummond de
Andrade” (Versiprosa), volume 4, editado pela Livraria José Olympio
Editora.
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond
www.carlosdrummond.com.br