Soco na névoa
O Paradoxo:
A enfermeira comenta sobre os fetos que ficam no útero além do tempo necessário, suas unhas crescem e como são finas, eles se cortam no rosto, sua pele se descola do corpo, eles evacuam e depois de comerem as próprias fezes sem terem nascido morrem e apodrecem.
A Porta:
Fumando uma idéia
dentro desse açougue metafísico :
É quase impossível
não pensar no paradoxo
quando irrompe nas esquinas,
a humanidade
com sua corrompida verticalidade
que jamais se tornará o diamante
sonhado pelo SER em Bento Prado Jr.
se proliferando como a imaginação paralisada
como o som da chuva
atravessando gerações de nuvens
até ser ofuscado por essa matéria escura
do Sr. Paul Klee,
impossível não-pensar nisso
ao vermos a turba exilada
em tristes pedaços de carne
sem nenhum êxtase
ou os incontáveis mortos
imitando a concha
no ácido do sublime
carvão do Eu :
Eu
( Um assassino se escondendo dentro do tempo )
Enviando a essência franqueada para campos de concentração dentro do Sol
( Seus raios cantando o infinito-foda-se )
Impossível não pensar nos olhos
Do Saturno do Sr. Goya
Na capa do Ou o poema contínuo Do Sr. Herberto Helder
Saturno mirando os raios, estes que escrevem
um cachorro morto no céu .
Impossível não pensar no Mozart-quântico
que mora no fundo da multidão-sono
como uma mônada-semente que não vinga
apodrecendo no jardim esquizocênico...
Não pensar
nas balas-perdidas, no perfume das granadas
explodindo no bar das Parcas...
Num eclipse-invertido seguido de uma chuva fina
por dentro do olhar
da criança recém-esquecida...
no lixão
Nesse bar-iceberg para o barco-bêbado no sangue
dos amantes-kamikases
( Não há outros?)
habitando como Mozart o fracasso da fusão
do um em um
( Nuvens de vapor)
no céu de Titanic-world...
Impossível não pensar no fracasso invisível
dos cadernos de cultura
onde o tédio de Camus
encontra o de Valéry
e ambos são dissolvidos
pelo olhar de um catador de papel
às 4 da manhã na portaria da USP
( Apenas um esqueleto de vento comenta essa idéia esquiva)
Enquanto ainda sonhamos
com a devolução das auroras roubadas
ou com o cheque sem fundos do carinho entre estranhos,
impossível não pensar na covardia disso:
A visão de um catador de papel neutro-efervescente totalmente anulado pelo primeiro círculo,
de Dante
nem na covardia desse falso-poema
da ficçionalização do encoberto
ou em outras nadificações
que alimentam em nós
o olhar de Saturno
e o desejo por carnificinas tão banais
que equivalem a ouvir, no cinema
um celular tocando no meio do filme,
como um veneno para o sentido oculto
nas vozes dos atores,
anulando, não as chacinas, mas a intensidade
das ausências,
como um grito em Bach.
Pausa para uma pergunta:
É melhor continuar sendo o fantasma de um poema ou em um poema?
Ou outra pergunta ?
Que se abre no sono-dos-sonos
da superficialidade, nessa massa flutuante
de anti-seres,
onde alguma coisa há
indo de encontro, ao nada- absoluto
que não há.
É impossível não pensar no pouco tempo que nos resta
Para tentar voltar ao outro :
Ao outro-agora.
Impossível não pensar na gratuidade,
onde o Sol nasce pisando nas nuvens,
para vomitar sua luz
no banheiro sujo da humanidade :
Esse oceano imóvel...
Não pensar nessa chuva
de satoris falsificados
através do sonho das multidões...
Nem na implosão dos cemitérios verticais da arte
Criando um gigantesco anti-smog
Para o sono dos sentidos...
Impossível não pensar no cansaço da visibilidade ,
Na inauguração da fábrica de suicidas-amadores,
(Não há outros?)
Na essência evaporada
passando pelo buraco da agulha
e desaparecendo no brilho surdo
da película de Berkeley.
Podemos ouvir nos ossos a voz
do grão de areia
cantando o nosso nome para o azul,
na tela Solidão do Sr. Iberê Camargo.
Não pensar no pouco tempo
Para projetar nosso riso
na festa dos cadáveres sem centro,
isso equivale ao sono desesperto
na saída do baile funk
ou ao sono-allegro-disperso
de uma festinha universitária,
na USP, UNICAMP, Mackenzie, etc
em todas erguemos um brinde seco
para o véu do corpo,
enquanto a verdadeira festa móvel dos galhos
avança pelos destroços da calçada,
até alcançar os do asfalto,
ali os pneus dos carros cantam uma ária dodecafônica
para as marcas
das calcinhas nas bundinhas das mãezinhas
de 13,14,15,16,17,18,19,20 e 21
que rebolam para o sempre e o mesmo,
opaciadas
por essas minúsculas asinhas de Ícaro
quebradas e retorcidas em seus ventres,
como seqüestrados em porta-malas,
crianças que irão cair
para o sempre e o mesmo rútilo
vaso sanitário do projeto humano :
Uma biblioteca deserta nos subterrâneos
de uma igreja gótica abandonada...
Enquanto isso,
Um bêbado canta um hino
Que mistura os hinos
do Corinthias e do Flamengo
com o Hino Nacional
e o resultado parace mais autêntico
do que o país em si...
É impossível não pensar em esculpir
um cão negro com os restos dessa criança índia
jogada na vala
do silêncio
ou na gaveta de cimento
das cintilâncias vazias.
Essa é para o Sr. Auden :
O cemitério da memória transcende a ficção dos fatos?
Posso ouvir a sua voz ecoando no jardim, dublada
Pelo esqueleto azul de Bruno Tolentino
No fundo do rio Tietê:
Por exemplo, em Hamlet, é fácil notar que o amor e a morte possuem a lógica de um assassinato,
com uma sutil diferença... No amor a ausência
é evocada para tentar materializar o fantasma de um
vivo.
Na morte, a vala comum do silêncio
explode e amplia o meio do rosto,
pétalas caem para dentro...
Por que não conseguimos contornar o nada com nossa mudez?
E há um não-grito caindo
No piso do Banco Dostoievski, do Hotel Proust,
Do Gogol Bank...
Que acaba de comprar a China
Um não grito no cemitério clandestino do universo...
Ainda estou no açougue-presídio, a chegada da tropa de choque não me acordou do metafísico.
É impossível não comparar
a chegada da tropa de choque
com a inércia dos anti-corpos...
Não pensar em Simone Weil
se esquecendo de Jesus
no meio da chuva :
E se a partícula pensa.
Ela pensa.
Também choveu no banho de sol
Interrompido pela rebelião
em volta do presídio de segurança máxima,
centenas de teresas em chamas,
formam uma flor
São os comandos de um lado e as facções do outro
Ela está pensando,
dentro da cabine do helicóptero
da polícia ou da CIA
( Que diferença fará?)
Pensa a policial...
Nem mesmo são coisas, como podem pensar? Como podem se revoltar?
Simone Weil diz para a chuva.
A mesma chuva que dezenas de anos depois
molha o visor do capacete dos soldados,
Simone Weil passa por mim e entra na fábrica.
Esqueça a tropa de choque, procuro pensar,
pensar como as partículas,
pensar nos mortos que sonham conosco
quando estamos acordados,
pensar no fantasma do universo,
nos raios desse fantasma
saindo do Sol,
em Cy Twonbly
desenhando o canto dos pássaros
dentro do açougue.
Em Mozart...
É melhor não.
Me dizem as partículas-Bartleby
O nome do jogo é sonhar, não pensar
Pode ser uma bela inversão da lógica da morte,
ao tentar não-pensar penso, logo, sonho.
Sonho com Chet Baker fumando um cigarro
na sacada do hotel, antes de cair,
com minha mãe morta me acordando,
sonho que não existo,
sonho com Baudelaire dizendo que :
A vida humana vale menos do que uma fábula .
A vida humana vale menos que um conto dos irmãos Grimm
Sonho que Humphrey Bogart e Camus são a mesma pessoa,
sonho que Miles e Coltrane estão tocando com os Beatles,
sonho que Jorge de Lima está lendo A invenção de Orfeu
para Brian Wilson
em uma senzala no Haiti,
sonho que sou um peixe de gelo e lentamente me transformo num peixe de fogo,
sonho que acordo e não me lembro onde deixei meu corpo,
sonho que acordo e não me lembro de ter acordado
e as duas sensações são a mesma,
sonho que posso enxergar a energia do silêncio,
sonho que acordo fora do sonho e pergunto :
Pergunto ao silencioso inferno que não funciona direito,
Pergunto ao paraíso invisível
Visível apenas para o fantasma das crianças
Pergunto ao alto fundo dos oceanos,
Ao imóvel fantasma do universo,
Que vive dentro da criança fantasma
pergunto para as paradas cardíacas,
para os buracos negros das balas,
para o brilho e a fumaça dos pneus queimando
MEU CORPO,
Para os soldados de 13,14,15,16,17,18,19,20 e 21
Cantando e dançando em volta da fogueira...
Para a escuridão das covas vazias,
para os espaços livres da minha presença,
infinitos ou não, que importa?
Pergunto anulando o não-grito :
Se não há tempo nenhum, em lugar algum, que estranho anti-sonho é esse, onde nada revela sua essência e propósito?
E a resposta, meus caros,
É como um soco,
Tão forte que me joga para fora,
Tão óbvia, que me recuso a dizê-la.
Apenas me levanto
Dentro de mim mesmo
Em algo que jamais senti ou pensei antes
E entro na Névoa.
Letra: Marcelo Ariel
Base: Ismael Sendeski & Nigro, KF
Baixo: Miro Dantas