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O PRIMEIRO SUCESSO A GENTE JAMAIS ESQUECE !
( mesmo que tenha sido no cabaré da Tia Neném)

A noite estava inacreditavelmente quente e estrelada. Nós fumávamos em silêncio na varanda da casa de fazenda no Arrozal, quatro rapazes em férias. Eu, Máriozinho e Gilson éramos ainda adolescentes. Zé Ivan, o mais velho, era recém formado em medicina. No Rio, estávamos os três primeiros aprendendo a tocar, com planos de formar um grupo. Mário aprendia baixo, Gilson, bateria e eu, violão. Zé Ivan arranhava na percussão e era o feliz proprietário de um inefável fusquinha cabriolé, daqueles de teto solar, nosso transporte pra aprontar em algumas das cidades próximas.
O Arrozal daquela época não passava de um pequeno distrito de meia dúzia de casas: morria antes das nove. Mas em menos de meia hora poderíamos chegar a Volta Redonda ou Barra Mansa, e - naquela noite de verão em particular - nossos hormônios em ebulição clamavam por alguma coisa pra fazer, alguma coisa grande... Foi Zé Ivan quem falou primeiro:
- Vocês conhecem Piraí?
- Não – respondemos eu e Máriozinho, quase em uníssono. Gilson disse que já tinha estado lá, mas de passagem.
- E se a gente desse um pulo lá agora? – insistiu o Zé.
- A essa hora? - retruquei – dia de semana? Já são quase onze. Vai estar tudo fechado.
Zé Ivan sorriu de lado:
-Tem o cabaré da Tia Neném...
Arregalamos os olhos. O cabaré da Neném era famoso em todo o sul do estado do Rio. Lindas mulheres. Boa comida, tudo que era tipo de bebida, muito movimento. Um verdadeiro desejo de consumo para garotos da zona norte em idade de descobrir as coisas da vida, naquela ainda puritana e mal começada década de 60, pré–revolução sexual.
Tia Neném, freqüentada por fazendeiros cheios da grana, era cara para bolsos estudantis. Mas Zé Ivan, pelo jeito, já vinha arquitetando o plano havia algum tempo:
- É o seguinte: saindo agora a gente chega lá antes da meia noite. É quando o bicho começa a pegar mesmo. A gente não precisa ficar com as meninas (aí um “oh!” decepcionado soou dentro das três cabeças mais novas, que só pensavam naquilo...), é só tomar uma ou duas, ver o movimento e se mandar. Senão a gente vai ficar aqui sem fazer nada. Olha só: a primeira cerveja é por minha conta. Depois vocês se viram, cada um por si.
Logo dito, logo feito. Entramos no fusquinha e tocamos pra Piraí. Passamos a cidade e rodamos ainda alguns quilômetros numa escuríssima e tortuosa estradinha de terra. De repente, depois de uma curva, fiat lux! Do meio do capim surgiu uma casa iluminada por uma profusão de lâmpadas de todas as cores: Tia Neném. Pra dizer a verdade, era mais luz que outra coisa. A casa devia ter tido seus tempos de glória, mas agora dependia bastante dos watts coloridos pra parecer coisa melhor. Não importava: para nós era o mais luxuoso dos castelos. Estacionamos o carro e fomos indo o mais marrentamente possível pra entrada, onde dois zelosos e gigantescos gorilas de terno nos barraram:
-É de menor?
Zé Ivan foi tomando a frente e exibindo a carteirinha de médico que já tanto nos livrara de situações semelhantes:
- Estão comigo, chefe.
O gorila-mor olhou nossas roupas de classe média e decidiu que provavelmente gastaríamos algum lá dentro.
- Vai entrando. Mas se sujar vai ter que sair tudo pelo porão.
O lado de dentro do cabaré era mais de acordo com a fama: um vasto e enfumaçadíssimo salão ocupado por dezenas de mesas, com uma pista de dança onde os pares se agarravam sob a fantasmagórica luz negra que era um must da época. Mas o que primeiro atraiu nossos olhares foi o palco, onde cinco músicos tocavam um velho samba-canção.
Fui reparando nos pares. As mulheres eram, em sua maioria, jovens, algumas teriam com certeza a nossa idade. Os homens eram mais velhos, muitos deles de terno. Éramos ETs naquele ambiente e algumas mesas nos olhavam e sorriam de soslaio. Comecei a achar que estava escrito “primeira vez” na minha testa. Afinal sentamos numa das mesas próximas do palco e pedimos cerveja. Ali dentro não tinha “de menor”: pedia, bebia. Passamos a rodada do Zé Ivan e pedimos outra, vasculhando disfarçadamente nossos bolsos e calculando quantas cervejas ainda poderíamos beber. O conjunto tirou mais uma meia dúzia de velhos sambas da cartola e parou pra descansar. Um dos músicos veio vindo em direção à nossa mesa, acenando. Gilson o reconheceu:
- Paulinho!
Paulinho, amigo de Gilson, tocava numa orquestra de baile de Volta Redonda. Conversamos alguns minutos sobre música. Ele reclamou:
- Pombas, o Benê, o guitarrista, é o maestro aqui da onda. Mas não sabe tocar bossa nova! Só rola isso aí que vocês ouviram.
Diga-se de passagem que nós quatro éramos radicais: tudo aquilo que não fosse bossa nova ou jazz nós rotulávamos de “brega” e pronto. Não tocávamos de jeito nenhum. Paulinho continuou:
- O Gilson falou que vocês tocam. Não rola uma canja aí? Eu garanto. Falo com o Benê e dou uma força no sax.
Levantou-se:
- Aí, vai começar outro set. Depois vocês atacam! Vamos lá!
Paulinho foi tocar e a gente ficou sem saber o que fazia. ”É agora” – dizia o Zé Ivan, que não tocava nada. “É fria”, amarelava Máriozinho, sempre cioso de micos reais e imaginários. Mas eu sempre carreguei comigo aquela fome de tocar, como diria o Ney, “em qualquer canto”:
- Vamos lá! A gente toca o que está ensaiado e pronto.
Gilson reforçou:
- O Paulinho sabe tudo. Qualquer buraco ele conserta.
Nosso repertório consistia, claro, de uma maciça maioria de hits de bossa nova e uns três ou quatro standards de jazz. O conjunto do Benê tocou mais uns vinte minutos e parou de novo. Paulinho pegou o microfone:
- Senhoras e senhores: vamos ouvir agora uma rapaziada lá do Rio que vai tocar umas bossas pra gente!
Gelei geral. E se desse tudo errado? Paulinho tapou o microfone e sussurrou pra nós:
- Como é que é o nome do grupo?
Branco geral. Lembrei-me do nome que tínhamos discutido na semana anterior, inspirado por nossa paixão por cinema e falei:
- Nouvelle Vague!
Paulinho preferiu calar-se e, sem nome mesmo, bater palmas para que subíssemos ao palco. A platéia permaneceu cética e continuou conversando sobre assuntos certamente mais interessantes que um quarteto de playboyzinhos metidos. Peguei a guitarra, olhei pra trás, vi que estavam todos prontos e... muito nervosos. Sussurrei para eles:
-“Samba de Verão” e depois “Garota de Ipanema”...
E atacamos. Os senhores de terno nos olhavam como se fôssemos bois desobedientes que resistiam a pastar. Mas as meninas foram se iluminando, e nós junto. Algumas vinham dançar sozinhas na beira do palco. Quando acabamos “Samba de Verão” e atacamos direto em “Garota de Ipanema”, elas já davam gritinhos e os senhores, evidentemente, começaram a sorrir também. Era a glória. Para abreviar, descemos do palco ovacionados. Tia Neném mandou uma rodada de cerveja grátis para a nossa mesa. E as meninas, ah, as meninas...
Na semana seguinte voltamos ao cabaré da Tia Neném. Mas como nada é perfeito, a memória do povo é curta e o conjunto do Benê não tocava naquele dia, saímos em branco. Pior: antes tivéssemos saído em branco, porque quando estávamos entrando no fusquinha do Zé Ivan, um bebum de terno claro começou a gritar lá da porta:
- Olha lá! São aqueles metidos de novo. Uns guris de m... que pensam que tão com tudo!
Veio andando pra cima da gente:
- Não tão com nada! só tocam essa p... de música de m...!
Achamos graça. Era nossa primeira vaia. Zé Ivan, mais experiente, não achou tanta graça assim.
- Vamos indo. Vai dar rolo.
Ligou o carro e começou a manobrar. O bebum veio andando e começou a se coçar demais pro nosso gosto. Acabou por abrir o paletó. Alguma coisa metálica brilhava no cós da calça dele:
-Volta aqui, seus p... vou mostrar pra vocês o que é tocar!
Agora ele estava claramente tentando tirar um revólver do cós da calça.
-Sujou! vamos embora!
O fusquinha arrancou derrapando as rodas de trás. Passamos pela pequena ponte de madeira, única saída de lá, já apertando o botão de pânico. O bebum já estava de arma na mão, mas para sorte nossa, tropeçou e caiu. Gilson abriu o teto solar e pôs meio corpo pra fora:
- Vai se f..., seu m...
Mas o bebum, amparado por aquele deus que protege os bêbados e as criancinhas levantou-se como se fosse um boneco de mola, de revólver na mão e tudo, e sentou o dedo. Gilson mergulhou de volta no banco de trás:
-Vaaaai, Zé!
Nunca mais voltamos à Tia Neném.
Mas o primeiro sucesso sabe como é... a gente não esquece jamais!

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NA ESTRADA é o nome da coluna escrita por Luiz Carlos Sá na Revista BACKSTAGE.

Foto: Sá, Rodrix & Guarabyra no show de ago/2006 no SESC ITAQUERA
( cortesia da Rita)

Pra ouvir: Morar sem paredes - Luiz Carlos Sá