Neste episódio do ‘podcast’ Perguntas Simples, é explorada a tradição do Cantar ao Desafio, uma prática de cantar de improviso típica das Romarias do Alto Minho, mas que também se encontra noutras regiões de Portugal, como o Alentejo ou os Açores. O mestre Augusto Canário é ouvido a exemplificar esta arte da música, que se destaca pelo jogo com as palavras em rimas e pelo uso do subentendido para misturar escárnio e maldizer com folclore.
Os não ditos, os subentendidos, a caricatura e a ironia são jogados de improviso e sem rede nem preparação prévia.
Capítulos:
00:00:17 Cantar ao Desafio.
00:07:05 Repentismo.
00:09:45 Brincadeiras na cantoria.
00:13:46 Temática e diversidade.
00:15:09 Ensino de música popular.
00:19:23 Tradição do cantar ao desafio.
00:22:28 Fado como património cultural.
00:26:19 Caricaturista com palavras.
00:29:05 Temas polémicos em cantarias.
00:32:39 Violência machista e doméstica.
00:37:16 Cantadores analfabetos e cultos.
00:41:33 Linguagem com segundo sentido.
00:43:28 Linguagem rural.
00:46:44 Interação com o público.
00:50:16 Improviso na música.
00:55:02 Desgarradas com três cantadores.
00:57:40 Peregrinação.
Nesta edição cantamos ao desafio.
De concertina na mão, no terreiro da romaria, de improviso, cantamos ao desafio.
É um regresso ao mais puro cantar do alto-minha.
Uma espécie de cantigas de escárnio e mal dizer, mas em forma folclórica.
Típica das romarias. Mas não exclusiva do Minho. O Alentejo, os Açores e outras regiões tem estas maneira de cantar ao desafio.
Nesta edição ouvimos o mestre Augusto Canário.
Mestre do dito e do não dito… e do quase dito.
Todos percebemos que ele ia a dizer… mas ele não disse.
Estamos por isso no terreno do subentendido.
Uma marca fundamental da linguagem humana.
Cantar ao desafio faz parte da alma do alto-Minho.
Frente a frente, com os pés na terra, na taberna ou junto a uma capela da romaria, dois homens, agora também mulheres, jogam com as palavras, em rimas, para gozar reciprocamente.
Há regras próprias deste cantar ao desafio.
Há um ritmo marcado pela concertina.
Há uma praxe. Primeiros as apresentações, depois o jogo de menorizar os oponentes através de finas rimas.
Há algumas regras neste jogo, regras não escritas.
As canções são de improviso.
O objetivo é mostrar-se maior, mais capaz, mais bonito, mais tudo.
Ora cantando os seus feitos e características, ora gozando com os fracassos ou defeitos dos outros cantadores.
No cantar ao desafio, os temas rodam muitas vezes pelo sexo.
Mas também aqui há uma arte. Os cantadores dão a entender, mas nunca são explícitos. Há um jogo de subentendidos. Uma espécie de código percebido entre cantadores e espetadores.
Usam-se analogias. usam-se os sorrisos marotos, usam-se as rimas que sugerem a palavra explicita que afinal não aparece.
A esta arte chama-se repentismo.
E Augusto Canário é, a par de Quim Barreiros, ícone maior desta maneira de cantar
A ROMARIA DE S: JOÃO D´ARGATodos os anos, a 29 de agosto, celebra-se a festa em honra de S. João d Arga.Nas vésperas os romeiros viagem até ao centro da Serra d Arga no concelho de Caminha para cumprirem as suas promessas ou simplesmente para celebrar a vida.É neste sitio onde acontece a magia maior do cantar ao desafio.Quando lá forem levem um farnel, provem o cabrito assado e bebam aguardente com mel.E assim vão perceber melhor as vozes que cantam o alto-Minho.
LER A TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO
00:00:00:13 - 00:00:05:28
Jorge
Augusto Canário, músico, cantador popular. Como é que se apresenta a Augusto Canário.
00:00:07:05 - 00:00:29:24
Canário
Normalmente apresentado como cantador e principalmente, principalmente artesão de cantigas do tempo como titular? Aliás, este é um cartão de visita que dizia tocador de concertina e cantador por paixão. Não deixou de ser isso, mas como era o nome, digamos, muito pomposo e muito grande artesão de cantigas, acumulou ser chamado.
00:00:30:06 - 00:00:36:02
Jorge
E como é que as pessoas que encontra nos nos concertos e por aí na rua? Como é que? Como é que o tratam?
00:00:36:22 - 00:00:47:13
Canário
E muitas vezes perguntam me se, Augusto, desculpe Canário, eu não sei se posso trocar por canário. Obviamente que pode, muito carinhosamente, muita gente já num canarinho ou mesmo.
00:00:47:13 - 00:00:53:14
Jorge
O canário e o homem que toca concertina, o homem que canta o desafio, o homem que usa um chapéu amarelo.
00:00:53:14 - 00:00:53:27
Canário
Amarelo.
00:00:54:05 - 00:00:55:10
Jorge
Foi um poema acidental.
00:00:55:10 - 00:01:20:09
Canário
Foi feito, foi. Foi um feliz, um feliz incidente, digamos assim, que é uma incidência, portanto, nada de mal. Portanto, como toda a gente sabe, os canários associa se imediatamente à cor amarelo, laranja, canários de várias cores que eu sei que é. Então, um dia, um amigo meu que tinha uma retrosaria, uma loja de danças, coisas que fazem falta as senhoras e não só.
00:01:20:23 - 00:01:32:00
Canário
Ali, em Viana do Castelo, telefonou me que tinha uma surpresa para mim e eu fui lá ter com ele e eu apresentou um chapéu amarelo. Fui eu satisfeito e.
00:01:32:00 - 00:01:32:27
Jorge
A reacção foi.
00:01:32:27 - 00:01:43:16
Canário
Foi muito agradável e eu disse Olha, fez aquilo. Eu disse olha aqui um chapéu com um amigo meu, fez um amigo meu, que é uma chapelaria, uma oficina, portanto, uma fábrica de chapéus. Já agora é real.
00:01:44:08 - 00:01:44:15
Jorge
Em.
00:01:46:00 - 00:02:09:28
Canário
Oliveira de Azeméis, e eu passei a usá lo. E, portanto, ele disse Olha, se quiseres mais falar comigo que eu faço, porque assim foi. Eu passei a usar o chapéu, só tinha aquilo. Um belo dia, portanto. No entanto, por é pior que as todas aquelas chegam, ficam quando surge. É uma das minhas cantoras tipo olho deste século. Lembro de chapéu para lavar e mandou o mandar ao circo.
00:02:09:28 - 00:02:13:09
Canário
E o chapéu ficou rigorosamente como o chapéu de um pobre.
00:02:13:14 - 00:02:14:03
Jorge
Ou a desgraça.
00:02:14:03 - 00:02:44:27
Canário
Todo desfeito. E entretanto, pronto. Falámos com o nosso amigo Luiz. É uma feira de salão que é o nome da freguesia e ele fez chapéus e depois aquilo passou a ser uma imagem de marca e passámos a ter chapéus, digamos assim, para para os nossos admiradores, pelos meus seguidores. E hoje mesmo que eu ando assim, normalmente na rua e que era viajar, que era passear, que era nova vida suas, quase que me foi, mas não sei.
00:02:44:27 - 00:02:50:07
Canário
Hoje não chapéu como surgiu no passado sábado. Isso até o amarelo, ainda por cima na rua.
00:02:50:07 - 00:02:53:29
Jorge
Não que tivesse que fazer sempre um boneco à volta do boneco que surge em palco.
00:02:53:29 - 00:03:21:28
Canário
Nós criamos o boneco. O boneco é aquele e é literalmente o boneco, porque inclusivamente numa gravação do DVD no último, foi em Braga, no São João, onde há uns anos fizemos uma coisa genuína e inédita que foi compor um boneco vestido tal qual como visto, mais ou menos desde os sapatos até ao chapéu, o colete a camisa, tudo com uma concertina amarela e em determinado momento, na parte da desgarrada.
00:03:21:28 - 00:03:42:09
Canário
Eu sei que o Miranda continua a cantar e aparece um amigo meu, um ator a manusear, a manipular. O boneco é o melhor, mas que vou tentar com o boneco, porque o boneco encantador da parte de fora do palco e depois apareceu, então já não era um boneco, não era o original e a réplica, literalmente um boneco.
00:03:42:10 - 00:03:45:22
Jorge
Não estamos aqui numa posso chamar a isto uma adega de sons.
00:03:46:20 - 00:03:50:12
Canário
Nunca ninguém me chamava isso. Mas eu gostei. Os grandes sons estamos.
00:03:50:12 - 00:03:51:01
Jorge
Aqui rodeados.
00:03:51:20 - 00:03:52:06
Canário
De sons.
00:03:52:06 - 00:03:57:04
Jorge
Guitarras atrás, as concertinas comunicam mais com as palavras ou com a música.
00:03:57:16 - 00:04:27:23
Canário
Esse não comunica muito com as palavras. A música só eu não faço música instrumental pouco fazemos de instrumentais. Houve uma altura que nos discos não temos um instrumental. Nós fazemos basicamente conversas com cantigas. As cantigas têm um cariz popular, algumas brejeiro, outras séries. Mas tenho a matriz, portanto, do domínio, digamos assim, da música popular de raiz tradicional. E aquilo que nós fazemos mais é que eu faço melhor, digamos assim.
00:04:27:28 - 00:04:35:03
Canário
Criarmos menos mal, cantar. O desafio é ser repentista. Isso faz se com as palavras repentista.
00:04:35:03 - 00:04:36:14
Jorge
Isso interessa me que é o repentismo.
00:04:36:24 - 00:04:55:29
Canário
No entanto, primeiro vou responder à chamada a concluir a ideia anterior que é que nós fazemos uma espécie de caricatura com as palavras nós brincarmos com as pessoas, nós e soltamos os cantadores uns aos outros. Estou a falar da forma de cantar brejeira do Alto Minho e domingo em geral. Eu, Entre Douro e Minho.
00:04:56:01 - 00:05:05:23
Jorge
Quis ver como é que as pessoas que não conhecem, que nunca viram o galo cantar a desgarrada, que nunca tiveram a sorte de ir a São João Arga por exemplo, ver essa desgarrada. O que acontece? Podemos pintar o.
00:05:05:23 - 00:05:17:23
Canário
Quadro de pintar o quadro de nós, cada cantador ou cantadeira. Isto num palco ali, palco é o mais natural possível, é o terreiro. Não há uma ação sem regras, sem som, sem nada.
00:05:17:23 - 00:05:19:21
Jorge
Portanto, não há microfones achando ainda.
00:05:19:22 - 00:05:40:15
Canário
No fundo, José Mayer é a terra e a tasca é o andar grande. Vamos assim é o lugar mais natural das cantigas. O desafio não é único neste momento, então a gente, como é que faz a apresentação? Normalmente as pessoas conhecem nos. Então já nos segue aos mais velhos, aos mais novos, que estão agora a surgir e já firmados com os cantadores.
00:05:40:15 - 00:05:41:03
Canário
E hoje cantava.