Listen

Description

Em uma sociedade onde é lugar-comum pais serem ausentes e/ou distantes, relapsos, agressores, indiferentes, austeros, frios; eu fui muito privilegiado. Tive um pai que contrariou todas as expectativas. Ele não era apenas um pai presente; era um mago, um criador, um contador de histórias. A escola era onde eu aprendia o nome das cores, mas em casa, com o Velho, eu entendia a beleza das cores. Na escola, aprendia o nome das notas musicais; com o velho, eu aprendia a escutar melodias com o coração. Enquanto vários pais mandavam seus filhos para a cama, o meu pai tocava violão até eu dormir. “Doralice, eu bem que te disse, amar é tolice, bobagem, ilusão”, era a minha favorita. Foi a primeira canção que aprendi a cantar. Meu pai me buscava na escola e me levava para passear de carro para escutar música, por horas. Contava as histórias de todas as canções, a vida dos compositores, quem era o cantor, o pianista, o violonista. Contava todas as fofocas dos artistas: “Chico Buarque já foi ‘puxador’ de carro’; “Caetano era apaixonado pela Regina Cazé”; “Vinícius teve nove esposas. Nenhuma aguentou o cara”. Todo dia era uma viagem para um mundo encantado. As canções, para ele, não tinham letra: “é poesia musicada!”, corrigia sempre. Foi meu pai quem me ensinou a tocar violão, a ler por prazer, a escrever com o coração, a ser curioso, inquisitivo, a gostar de poesia, arte, cultura. Foi quem me falou de direitos humanos e que só tinha dois palavrões que eu não podia dizer dentro de casa: culpa e guerra.
Através de suas canções, aprendi a acreditar que compor e cantar não era só para quem era tinha gravadora. Quando ele mostrava uma música sua, eu pensava: “ele também é genial”. Quando comecei a compor, corria para mostrar para ele, e foi assim até o fim de sua vida. As sugestões que me dava me faziam melhorar e querer cada vez mais aprofundar o ofício. Era sempre orgulhoso, empolgado e me colocava pra cima. O mundo podia desmoronar na escola, na rua, na relação com as pessoas, que não importava. Eu tinha meu pai, minha rocha, meu chão.
Quando o Velho ganhou o dinheiro do FAC (Fundo de Apoio à Cultura) para fazer a “Sinfonia da Cidade Nova”, eu estava no último ano do Ensino Médio. Foram meses de trabalho intenso, nos quais ele fez o projeto mais detalhado e embasado que o Governo do Distrito Federal já viu (e depois a prestação de contas mais perfeita). Meu velho estava cansado, mas poucas vezes o vi tão realizado. Gravou com os melhores músicos da cidade! Seus ídolos! E os caras gravaram as músicas dele! Músicas geniais, diga-se de passagem, porque era um gênio. Quando sentava para compor, não ficava muito atrás dos grandes “poetas musicais” da MPB. Suas canções são ricas em alegorias, sentimentos, melodias e muita profundidade. Suas letras não tem pontas soltas. Quando botava poemas nas músicas de outras pessoas, as palavras abraçavam a melodia com tanta maestria, que parecia que as duas dimensões haviam nascido juntas. Todo parceiro do Velho voltava para compor com ele novamente. Não achavam outro igual.
A “Sinfonia da Cidade Nova” é um retrato dessa inspiração e transpiração toda. Para os olhos de alguns, ela pode parecer uma exaltação, quase ufanista, de uma cidade cheia de problemas. Em alguns aspectos, até é. Mas percebo que as pessoas que criticam sua adoração pelo quadradinho, geralmente não conheceram meu pai. Quem conviveu com ele, sabe do amor profundo e verdadeiro que sentia por Brasília. A Capital Federal o acolheu quando ele migrou sozinho do Rio Grande do Sul e o presenteou com um emprego, uma carreira musical, uma esposa e três filhos que o amavam muito. Ele foi muito mais feliz em Brasília do que em qualquer outro lugar do mundo. Esse disco é uma carta de amor manuscrita, do poeta para o seu lar. E é um presente, também, para quem escuta. O nível de esmero nos arranjos e composições mostram a alma de um dos maiores compositores que essa cidade já viu. Estou sendo parcial, porque sou filho de Nestor Kirjner? Responder a essa pergunta não me interessa. Cabe ao ouvinte julgar. Mas uma coisa eu digo: o amor que eu sinto no coração quando escuto esse disco é uma amostra do maior amor que já senti na vida e isso é inquestionável! Nesse centésimo episódio do PodCália, Gigola Pierrot e Daniel Menino Alado, vão gastar seus Minutos Vagabundos para externar seus Pensamentos sobre um dos melhores discos da Música Popular Brasiliense, Brasileira e cuíca do mundo.