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Moldar histórias
Instituto Tomie Ohtake

Há milhares de anos, a terra em que pisamos vem passando por sucessivos processos de transformação. Alguns deles podem ser facilmente apreendidos, como a construção de estradas, plantações, açudes, represas, canais, aterros, minas e outras intervenções humanas que modificam a paisagem e os fluxos da vida. Outros, de escala muito maior, desenvolvem-se em um tempo tão alargado, que é difícil percebê-los: o surgimento de continentes, cordilheiras, montanhas, vales, rios, oceanos e ilhas, dentre outros acontecimentos. Em torno desses fenômenos geológicos lentos, a vida se reorganiza e se recria, continuamente.Conhecemos essas transformações por meio de pesquisas que as mapeiam e nos contam sobre suas origens – e nenhuma delas é capaz, sozinha, de abranger todos os fenômenos transcorridos –, mas também as vemos presentes nas paisagens que nos circundam. O barro – como é chamada a argila em seu estado natural, antes do preparo para a modelagem – surge de uma série de acasos encadeados ao longo de milhares de anos, em uma coreografia de gestos muito lentos que se acumulam até se transformarem em uma massa mole, capaz de reter a memória do toque e o formato das mãos que a modelam. Tocar o barro é como tatear a síntese de um mundo cuja duração não pode ser apreendida pelos nossos sentidos, diante da brevidade do nosso tempo de vida em relação ao universo.Os seres humanos se apropriaram do barro como elemento fundamental para a construção e a continuidade de suas práticas culturais. Por meio dele, foram registrados gestos que chegaram ao nosso tempo, cuidadosamente resgatados pela arqueologia e pela curiosidade, e que nos contam sobre histórias distantes, mas que nos trouxeram até aqui – a invenção e os usos de objetos no cotidiano, o manejo dos resíduos, os rituais de chegada e despedida, a representação das relações sociais, o registro dos conhecimentos, a comunicação com o sagrado, entre tantas outras. Pelo barro, conhecemos um sentido de ancestralidade que liga as diferentes manifestações da espiritualidade à arqueologia, que conecta as cosmologias de criação à matéria plástica que deu origem a mitos, rituais, saberes compartilhados e histórias que conhecemos por meio da persistência das partículas minerais, das quais somos continuação.As semelhanças entre as tecnologias do manejo do barro em diferentes lugares do mundo, constituídas por saberes desenvolvidos por comunidades das quais, até este momento, não se tem registros de contato umas com as outras, levam a crer que tais conhecimentos foram construídos por meio da observação e da experimentação – não só dos processos de criação, mas também dos ciclos da natureza, das condições ambientais e das matérias-primas disponíveis nos variados territórios. Esses saberes foram sendo transmitidos entre gerações que aprenderam, além das técnicas, o compromisso com a natureza: observar, compreender e respeitar seus ciclos e processos. Isso nos lembra que somos parte de um sistema complexo, composto por aquilo que está tão distante que não podemos enxergar e, também, por aquilo que, de tão próximo, escapa à percepção.Para falar sobre o barro sem ignorar sua complexidade e sua potência, é preciso passar pelos assuntos que são atravessados por ele, como ancestralidade, ciclos da natureza, cosmologias de diferentes povos, ciência, espiritualidade, arte, educação e cultura. Esse gesto extensivo acolhe múltiplos sentidos do barro e evoca elementos que têm com ele proximidades semânticas, conceituais e simbólicas: a terra, o território e a natureza. Desse cruzamento, surgiu este livro, que se configura como uma jornada pelas histórias moldadas pelo barro.O barro está presente em toda a crosta terrestre e, ao mesmo tempo, é único em cada lugar, formado por processos de sedimentação e misturas químicas sempre diferentes, ainda que parecidas. E se cada território conforma-se por condições que fazem surgir comunidades singulares, falar sobre o barro implica tocar essas especificidades. Por isso, este livro é composto por diversas vozes, vindas de experiências e campos de conhecimento distintos, que, generosamente, compartilharam em forma de textos suas relações únicas com a terra, o barro, o território e a natureza, manifestadas na religiosidade, na espiritualidade, na arte, nas dinâmicas de ensino e aprendizado, na vida coletiva, na construção da ancestralidade, na filosofia e na ciência.Provocando atravessamentos e construindo pontes entre os textos, os ensaios visuais aparecem para contar outras histórias sobre o barro, revelando diferentes caminhadas pelas páginas do livro a serem percebidas e apropriadas por cada pessoa leitora. Essas imagens contam sobre processos de retomada e partilha de saberes ancestrais que também estão conectados ao direito ao território e à memória; compartilham gestos de criação que consideram a perenidade das matérias do mundo; retomam os vestígios materiais legados por quem habitou a Terra há milhares de anos e ainda nos ensinam sobre futuros possíveis; estimulam diálogos entre corpos, memórias e cosmologias que brotam de diferentes territórios; e articulam experimentações de reconhecimento de nossos corpos pelo simples contato com a matéria proveniente da terra.Além disso, os caminhos deste livro são permeados por convites propostos por artistas cujas trajetórias também são atravessadas pelo barro, independentemente de seu estado físico. Esses convites se configuram como propostas de intervenção no mundo, em escalas diferentes, que ativam sentidos e memórias, propõem mobilizações de grupos ou comunidades, engajam processos de pesquisa sensíveis e poéticos a partir de elementos que habitam as casas, escolas, ruas, quintais, hortas, terreiros e outros lugares de afeto. Além do tato, sentido que protagoniza a relação de troca e intimidade entre o corpo e o barro, a multissensorialidade faz parte dessas experiências, abrindo caminhos para que a capacidade imaginativa de cada sujeito possa criar não somente objetos e conceitos para o mundo, mas também transformá-lo por meio da reinvenção das relações de ensino e aprendizagem, afeto e partilha.Todo esse conteúdo é atravessado por uma série de perguntas construídas a partir das experiências que a equipe educativa do Instituto Tomie Ohtake vem desenvolvendo com os variados públicos e as exposições. Ao mesmo tempo que buscam ampliar o repertório cultural das pessoas leitoras, as perguntas as convidam a se implicar ativamente nesse movimento de moldar histórias. Elas aparecem entre as páginas de maneiras imprevisíveis, saltam do livro em direção à vida e convidam a momentos de reflexão, aprofundamento da pesquisa, partilha de experiências ou, até mesmo, pausa para descanso. As respostas a esses questionamentos são essencialmente múltiplas, pois surgem das experiências únicas de cada sujeito no mundo, em territórios tão diversos quanto a própria terra.Há, ainda, a possibilidade de acessar essa jornada pelo barro por meio de sentidos diferentes. Este livro é acompanhado de encarte em braile, versão digital acessível, narração de todos os conteúdos, audiodescrição de todas as imagens, ambientação sonora criada especialmente para o livro e vídeo de apresentação em libras (língua brasileira de sinais), com legendas e narração em língua portuguesa. Os recursos de acessibilidade, além de garantir o acesso das pessoas com deficiência, amplificam a potência e o alcance do livro através da multissensorialidade. Incentivamos o uso compartilhado entre pessoas com e sem deficiência, propondo maneiras de se relacionar com a arte, a educação e a cultura que promovam a integração e a coletividade.No decorrer da pesquisa e da construção deste livro, dentre as muitas lições oferecidas pelo barro, destacamos a sua potência de transformação individual e de mobilização coletiva. O contato com essa matéria, que carrega em si eventos ancestrais de criação da Terra, nos reconecta com a natureza e com um sentido de pertencimento a seus ciclos, compreendendo nossa existência e nossa cultura como parte deles. Assim como a maleabilidade do barro pôde, no passado, construir culturas e transformar o mundo, ela também pode nos ensinar sobre nossa capacidade de fazer o mesmo a partir de um profundo respeito aos ciclos da natureza e a todos os seres vivos.Este livro – o primeiro da coleção Caderno-ensaio –, concebido pela junção de muitos saberes e experiências, propõe a criação de comunidades em torno de si, formadas por profissionais da educação, estudantes, artesãos, artistas, pensadores, pesquisadores e quem mais possa se interessar pelo aprofundamento da relação com o barro e, também, com a terra, o território e a natureza. Desejamos que cada página a seguir seja um encontro singular não só com o barro, mas também de cada pessoa leitora com o seu corpo e com o mundo que a rodeia. E que cada pequena descoberta por essa trilha de terra se mostre como uma possibilidade instigante de moldarmos e partilharmos, juntas e juntos, as histórias sobre o chão em que pisamos.

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NARRAÇÃO
MARÉ DISSIDENTE ACESSIBILIDADE CRIATIVA
Narração: Gabi Martins