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Diogo Vaz Pinto E Fernando Ramalho
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Enterrados no Jardim
Assalto à Biblioteca Nacional com a bandeira pirata de Luiz Pacheco
Num mundo coagulado, num tempo viscoso, em que só se podia andar aos tropeções, isto quando outros marchavam, cercavam, se punham em cima para que ninguém deixasse de se sentir deglutido, embrutecido, sem conseguir fazer outra ideia da vida, e ao menor esforço logo se sentisse ofegante, assim mesmo ainda houve um que outro a recusarem viver esse pesadelo da lentidão e da impotência, esse enfado dos órgãos. Houve quem fosse capaz de ver as coisas através da sua fadiga, e escavar à unha o seu penhasco. A ele ainda lhe ouvimos o passo nervoso, aq...
2025-06-24
2h 23
Enterrados no Jardim
As cenas do crime. Uma conversa com Joana Manuel
Dizem que se escuta um estranho silêncio uns momentos antes. Os desastres respiram fundo. A terra sabe-o. Fica tudo quieto, na expectativa. É assim antes dos terramotos e de outros abalos naturais. E há uma nota colhida à margem de uma obra poética dessas que estão sempre a assediar a beleza, buscando legitimar-se, mas que depois mal podem pagar as dívidas face a uma informação clara e incisiva, e que precisam de ir colher noutro lugar: “Quando morremos, a audição é o último sentido a desaparecer.” Talvez busquemos até ao fim, e no limite das nossas capacidades, essa...
2025-06-20
4h 04
Enterrados no Jardim
"Sperma retentum venenum est". Uma conversa com António de Castro Caeiro
Por mais que goste de exibir a sua perpétua avidez, a glutonice deste tempo sacia-se depressa, e o ciclo repete-se sem margem para desvios. É um tempo avesso a grandes proclamações, ainda que esteja ansioso por distracções, catástrofes que o venham beliscar, mantendo-se desperto com recurso a uma teatralização que abusa do som e da fúria, e fazendo do quotidiano um tédio constante com vista sobre o abismo. Esta esclerose gradual da existência estabelece um paradoxo fundamental entre, por um lado, os tremendos abalos que se verificam na perspectiva global, e, por outro, a mon...
2025-06-13
4h 31
Enterrados no Jardim
Alice no País das Finanças. Uma conversa com Ricardo Paes Mamede
Não anda longe o momento da atomização absoluta, da conversão de cada um de nós em figuras que se diluem num espelho programado, numa miragem que nos absorve como Narcisos do curso de águas digitais. Há coisas que não se podem traduzir, nem espelhar entre mundos, sob o perigo obscuro de se produzir um reflexo subtilmente monstruoso e que pode bem contaminar ou assombrar o original. Mary Shelley disse algo nesta linha, mas de forma tão astutamente memorável que a frase se torna em si mesma um narcótico: "We are unfashioned creatures...
2025-06-06
2h 57
Enterrados no Jardim
O futebol e outras civilizações ficcionais. Outra conversa com Carlos Maria Bobone
Teria sido bom se em vez de cigarros e outros vícios ocasionais, tivéssemos aprendido um instrumento, desses que puxam por nós, tornam mais fértil a solidão, e nos levam por lugares perdidos à boleia do som, frequentando uma gente que prescindiu de se fazer interessante, de se explicar, coleccionar temas e opiniões, mas que prefere outro ângulo do mundo, outras frequências, promete o sangue a uma circulação mais vasta, prescindir do teatro de quem está aí para nos dizer uma e outra vez quem é, antes tornar-se um nativo do fundo, das regiões que acatam t...
2025-05-30
3h 33
Enterrados no Jardim
O real como transcendência. Uma conversa com Luís Bernardo
Está difícil imaginar como vamos fazer os desertos engasgarem-se de novo com as marés. Parecemos estar reduzidos a uma política em migalhas, política apenas concebida como mecanismo de substituição do real por ficções, mesmo porque, como assinalava Enrique Lihn, "nada é suficientemente real para um fantasma", e são apenas fantasmas aquilo que produz este mundo sucessivamente diluído que nos é posto diante dos olhos pelos ecrãs, de tal modo que não falta muito até que mesmo a palavra "homem" passe a ser ouvida com suspeita, ferindo as narinas delicadas de quem prefere esse oni...
2025-05-23
4h 00
Enterrados no Jardim
Em nome dos bárbaros. Com o Changuito no centésimo episódio
Já andamos nisto há cem episódios, a tentar desenhar essa periferia monstruosa em torno de uma cultura que se excede de tão recomendável, debitando exemplos, listas de autores e obras, “ideias flutuantes”, enaltecendo-se na sua acumulação esgotante, com esse enredo esfalfado em que as mesmas personagens inofensivas aperfeiçoam os gestos de mármore, com os seus conhecimentos fragmentados, desprovidos de um eixo, de um sentido de unidade e de um desejo de acção. Vemos por aí tudo tão mal digerido, sendo tão raros aqueles que trabalham a qualidade da sua culpa, quando um embate j...
2025-05-17
4h 22
Enterrados no Jardim
Uma sinfonia de chumbo nos 100 anos do Pacheco. Em conversa com João Pedro George
Para se ser um homem deste tempo ou até de outros, e variar, cumular, não basta estar vivo, como estamos todos, mais ou menos, tantos sem grande proveito, para si mesmos ou para a época, não basta isso, ainda é preciso ter ouvido, escutar a música que faz cada um, que fazemos todos, os que sabem arrancar notas ao seu instrumento, seja este qual for, ouvir como tudo isso depois se eleva, que sinfonia ou caos se gera... Se não se consegue uma harmonia de jeito, mas anda tudo aos encontrões, a produzir ruído, e se, muita...
2025-05-08
4h 28
Enterrados no Jardim
Uma escatologia política: do mal à emancipação. Conversa com Tiago Mota Saraiva
A um político nos nossos dias aquilo que deveríamos exigir antes de qualquer outra coisa é que tenha a disposição de acumular "um cadastro de prodígios", que o seu discurso se liberte do horizonte do provável, procurando formular uma profecia obscena e que passe pelo triunfo de uma voz maldita, de tal modo que aqueles que o oiçam se sintam já de certo modo culpados, capazes de vislumbrar essa realidade alternativa com uma precisão quase alucinante. Talvez não se possa resgatar a política sem uma boa dose de delírio, algo que não nos s...
2025-05-02
4h 23
Enterrados no Jardim
Pornografia, kidfluencing e iogurtes com pernas. Uma conversa com Maria João Faustino
O que é decisivo transformar permanece quase sempre em segredo, leva o tempo necessário, não se apressa, mas, aos poucos, vai chegando à sua plenitude devastadora. Não leva tanto tempo como imaginam aqueles que preferem não pensar nisso, mas muitas vezes não chega a tempo de socorrer os que começam a sentir-se desesperados. Ainda assim há que aprender com essa espera, crescer com ela. Podemos ler sobre este movimento surdo no conto de duas cidades de Dickens, ouvir um diálogo entre esses que exigem que o tremor de terra cresça a ponto de engolir uma cidade...
2025-04-25
4h 26
Enterrados no Jardim
Déspotas, caudilhos e ditadores de bairro. Uma conversa com alguns fantasmas
Já só se pode contar com os brutos para levar isto ou aquilo por diante, seja o que for, uma vez que, pelos seus próprios modos, estão familiarizados com o estrago, e não os tolhe a falta de um nexo óbvio, estão habituados a pegar por onde der, e ajudam-nos a partir do momento em que nos assumimos também como monstros folhetinescos, desses que dão corda a uma intriga qualquer, até porque se nos calamos logo mergulhamos num silêncio predador, assim, repetindo os mesmos tiques, tomamos balanço no que houver, mesmo em semanas c...
2025-04-18
3h 35
Enterrados no Jardim
O cheque-prenda das funerárias e outros saldos. Uma conversa com Vasco Santos
O homem não se reproduz numa grande gargalhada, e é pena. Daria outro sentido às coisas, e seria já por si uma filosofia de impulso quando as coisas não parecem ser capazes de rastejar mais baixo. Já se sabe que os chefes de família em nada acreditam, mas que grande fé colocam no seu cinismo. A situação da nossa fragmentada e precária civilização é cada vez mais grave, lê-se em toda a parte. E as luzes que ainda nos restam parecem cada vez mais íngremes. Todo este desgaste, estes milhões diariamente condenados à frustração, deve ser aqui o l...
2025-04-10
3h 39
Enterrados no Jardim
Misoginia, linchamentos e a economia do ressentimento. Outra conversa com Maria Lis
“Quero conhecer a puta./ A puta da cidade. A única./ A fornecedora./ Na rua de Baixo/ Onde é proibido passar./ Onde o ar é vidro ardendo/ E labaredas torram a língua/ De quem disser: Eu quero/ A puta/ Quero a puta quero a puta.// Ela arreganha dentes largos/ De longe. Na mata do cabelo/ Se abre toda, chupante/ Boca de mina amanteigada/ Quente. A puta quente.// É preciso crescer/ esta noite inteira sem parar (…)” Não é uma provocação, é Drummond de Andrade, o mais canalha dos anjos, o mais encarnado dessa hierarquia que se some pelo tecto da criação, o homem que envelhec...
2025-04-05
4h 17
Enterrados no Jardim
A grande guerra à realidade. Outra conversa com Rui Nunes
Este tipo masturba-se à sombra de uma árvore de que não sabe o nome, é espiado também desde um ninho qualquer por pássaros sem uma espécie que pudesse distinguir das demais, tem diante de si uns quantos cadáveres, rostos familiares dos filmes, das revistas, corpos que a sua fantasia se entretém a compor e decompor, enquanto procura um ângulo que o satisfaça. Em tempos escrevia umas coisas, foi publicado, tinha boas relações, e não demorou a ver-se como uma pequena vedeta no circuito, mas em breve já lhe parecia que arrastava o seu caixão atrá...
2025-03-28
3h 57
Enterrados no Jardim
A vergonha tem de mudar de lado. Uma conversa com Patrícia Portela
Não deveria haver coisa mais suja do que isso de pôr-se a escrever sem um fim claro, ir acerbilhando as frases de modo a gerar um grau qualquer de irrazoabilidade, uma relação suspeita, cujos esforços se tornam um motivo de perturbação à volta. “Começo a escrever. E quando o faço nada de bom se passa já no meu íntimo”, anota Santos Fernando. Na verdade, é essa a inflexão decisiva de uma escrita, quando nos damos conta de que não vem orientada por nenhum princípio edificante, ela impõe-se e nada de bom dali se pode espe...
2025-03-21
4h 45
Enterrados no Jardim
As mais novas cartas portuguesas. Uma conversa com Sara Araújo
"A poesia é onde tudo acontece”, escreveu Alejandra Pizarnik. E adiantou que dizer “liberdade” e “verdade” em referência ao mundo em que vivemos (ou não vivemos) é dizer uma mentira. “Só não é mentira quando se atribui estas palavras à poesia: o lugar onde tudo é possível.” Mas há muito que deixou de ser assim entre nós. Por cá a poesia é o lugar onde nada acontece, e são realmente muito poucos aqueles que declaradamente assumem a poesia como fala da insubmissão, e que através dela manifestam desprezo pelas formas do poder. Por essa razão, como já alguns fizeram questão de sub...
2025-03-14
4h 58
Enterrados no Jardim
Jornais, orquestras, tripulações e naufrágios. Uma conversa com João Sedas Nunes
Uma boa redacção é um cruzamento entre um navio daqueles do século XVII e uma tremenda orquestra, um sítio que em si mesmo vai a caminho, e transporta um profundo tumulto, esperanças, fúrias, um convívio pouco vigiado, alentado por todo o género de substâncias, quimícas, imaginárias, o raio, é um sítio laborioso, grave, atarefado, às vezes absurdamente tenso, outros explodindo de ânimo, risos, e que está sempre a tremer no ar do dia seguinte. É uma catedral onde buscam refúgio os seres que não estão bem com a vida como ela é, e qu...
2025-03-07
3h 46
Enterrados no Jardim
O surrealismo e a astúcia popular. Uma conversa com B Fachada
Muitos parecem deslumbrados com a época e a sua tolerância, o seu enredo caprichoso, a sua ânsia de tudo deglutir, de acolher todos os deserdados, todos esses que vão sendo empurrados para o amontoado, formando a grande pilha, nessa construção que ganha altura apenas para que tudo fique confinado à sombra que projecta. A imensa variedade de que as comunidades se compunham, as periferias com as suas diferenças, tudo se vê invadido pelo centro, que produz uma lei da gravidade que tudo desfigura. Como assinalava Pasolini, "as estradas, a motorização, etc., uniram estreitamente a periferia ao centro...
2025-02-28
4h 32
Enterrados no Jardim
Espantar os limites da visão. Uma conversa com Carlos Vidal
Talvez o homem seja esse animal trágico condenado a gerar os predadores que acabarão por lhe dar caça e levá-lo a uma submissão permanente ou, até, à extinção. Mas antes de dar forma a uma razão exterior, fomo-nos desprotegendo, expandindo o elemento sacrificial e degradante dos mais fracos pelos mais fortes, até nos condicionarmos a uma existência em que cada homem é o seu próprio inimigo, deixando-se inocular de um vírus que o destrói a partir de dentro. Pensemos como vivemos presos às imagens, dominados e sem nos podermos libertar do fascínio que e...
2025-02-21
3h 09
Enterrados no Jardim
Mapa para não enlouquecer de vez. Uma conversa com Serena Cacchioli
Um tipo passeia-se entre as ilhas e as estantes de uma livraria, abre os livros colocados em destaque, e nem a sensação tem de estar à janela, seguindo figuras em ponto pequeno lá em baixo, muito menos vultos que se deslocam noutra dimensão, antes parece que só vê cortinados. Há quem se delicie com os padrões, os bordados, como há quem prefira olhar para frutos num quadro, em vez de os ter numa cesta, à distância de um impulso. Às vezes, ao fim de umas frases, envelhecemos, a língua fica como um peso morto, incapaz de tocar com a po...
2025-02-15
3h 46
Enterrados no Jardim
Encontrar a nossa partitura física. Uma conversa com Cátia Terrinca
Ainda que nos tenhamos tornado imensamente hábeis na hora de produzir diagnósticos da nossa época, aquilo que virá, vem e consegue sempre atingir-nos como um atropelo. O futuro surge sempre como um intruso, que abala as previsões, chega a escarnecer delas. Talvez isso funde o optimismo daqueles que vivem para o futuro como para uma vingança, mesmo que esta não possa ser encenada a seu favor. Pior seria se se acomodassem às coisas tal qual estas estão. Certa vez, enfrentando uma barragem de recriminações da parte da crítica soviética, avessa a qualquer es...
2025-02-07
2h 35
Enterrados no Jardim
Desamparados frente à noite. Uma conversa com Pedro Levi Bismarck
Desta vez, subimos uns galhos para respirar outra coisa, para desoxidar a alma do imobilismo lisboeta, deram-nos margem para uma breve digressão, para ir saber a que distância ainda é possível estender a voz, desenterrar os ossos de alguns ecos, isto sendo certo que o exercício de um discurso crítico ou artístico só pode ter algum papel assim que se desenvencilhe de privilégios. Tende a ficar claro que, hoje, só o que está em fuga permanece, apenas aquilo que não se resolve diante de si mesmo, no sufoco do seu reflexo, só aquilo que absorve o...
2025-02-02
4h 21
Enterrados no Jardim
Associações de pastorícia cultural. Uma conversa com João Eça
Que lindo cortejo de condenados este que nos é dado apreciar. Neste país todo ele em -inho, como já dizia o outro, também tínhamos de ter os nossos artistas, e as duas ou três agências de promoção, arranjos, prestígios e reputações forjadas do pé para a mão, montras, pódios, esse bando de alminhas condecoradas, sempre com toda a disponibilidade para ir, e depois todos esses aspirantes, como náufragos à espera da manhã, é verdadeiramente uma doçura, e mesmo um orgulho para todos nós. Onde quer que eles estejam, com os seus adereços de i...
2025-01-24
3h 50
Enterrados no Jardim
Para acabar de vez com a boa-consciência do público. Uma conversa com Margarida David Cardoso
Para 2025 não temos grandes planos, apenas a insistência, os gestos que exigem ser lidos na continuação de um tumulto, prosseguimos os esforços, os erros de que ainda somos capazes, com aquela liberdade de já tudo ter sido dito, estando tudo ainda por fazer. Sem nenhum compromisso com a inocência, usamos um relógio morto no pulso, e se o tempo se decompõe, como esse inodoro cadáver, o tique taque soa a uma risada. Só agora começámos a perceber o que é isso da História, como esta faz de nós os seus objectos e...
2025-01-17
3h 41
Enterrados no Jardim
Sentir no ar outra coisa além do perfume de adeuses. Outra conversa com Nuno Ramos de Almeida
É difícil saber como se atravessa o nada deste arco, essa linha invisível do ano novo. Não há uma porta, talvez só um buraco, de um lado e do outro: o mesmo. Olhamos em volta, e, nas ruas, por toda a parte, menos do que um fantasma, só uma bruma retardada. Desde há um tempo já não há começos, e, deste modo, apoiamo-nos em rituais desgastados, e em todas as nossas manifestações apenas se exprime um cansaço fundamental. “Há no ar como que um perfume de ‘adeuses’”, notava Steiner. “A cronometria íntima, os contratos com o tempo, que...
2025-01-01
3h 40
Enterrados no Jardim
Luigi Mangione, um juiz selvagem em tempos de injustiça. Outra conversa com Luhuna Carvalho
Não seria mau se, em vez de João e Maria, na lista dos nomes mais populares dados aos recém-nascidos surgissem nos próximos anos Greta e Luigi, em honra a essas figuras capazes de nos despertar para o escândalo do nosso modo de vida. Antes que nos seja possível reconhecer a necessidade do regresso da vingança como parte activa e meio de restituição do “princípio de coesão íntima do mundo” (Goethe), devemos começar por reconhecer como fomos expropriados dos elementos mediais, como não somos hoje capazes de produzir nem ecos nem refle...
2024-12-27
3h 21
Enterrados no Jardim
Da missa de galo à cabidela do costume. Uma conversa com Cristina Carvalho
Àqueles a quem o Natal diz muito pouco ou mesmo nada, o avesso das expectativas, esse sentido que nasce de tanto se tocar o mundo de fora, de interpretar um elemento de desordem, um modo de alegria tão apropriada à realidade como uma traição, seria embaraçoso tentar falar dessa sensação absurda de paz de que gozámos alguns enquanto crianças, estando entregues à espera, a uma difusa ansiedade, enquanto numa sala ao lado os adultos, em grande número, falavam entre si, defendendo essa mística da possibilidade de se crescer com este mundo, e de isso signific...
2024-12-24
3h 02
Enterrados no Jardim
A época que roeu a juventude até ao osso. Uma conversa com António Guerreiro
A cultura hoje é essa espelunca onde o espírito entra e sai como e quando quer, ficando sempre incólume. É mais um dos tantos instrumentos de prostituição ao dispor. Mas cada vez fica mais difícil ir da medida à desmesura, ou do cálculo ao delírio. A coragem, naquele sentido de uma forte declinação do nosso nome, há muito que se perdeu. Ninguém exige novas formas de sentir, novas formas de pensar, e não podíamos estar mais longe de cumprir o projecto de Nietzsche, que passava por fazer da cultura (fosse só isto de ler, ou mesmo...
2024-12-20
3h 46
Enterrados no Jardim
As listas, os algoritmos e os espantalhos. Uma conversa com Patrícia Soares Martins
Mais tarde, talvez façamos outra leitura do que significaram estes ensaios, como se em nós buscássemos o inimaginável, uma hipótese de romper com a cadência que nos leva a sentir que os dias se sucedem no sentido de uma constante subtracção. Talvez um dia as derivas que acumulámos possam permitir outra leitura, como um esforço que fizemos para nos mantermos num estado de perfeita disponibilidade de forma a que um tempo que sufocava entre impossibilidades por fim se oferecesse margem para romper com esta música desgastante que nos cerca e nos domin...
2024-12-14
4h 18
Enterrados no Jardim
Empregados da própria visibilidade. Uma conversa com Guilherme Henriques
Aqui estamos entre todos os caprichos que nos dão a volta às ideias nas íntimas mudanças de cada dia e, muitas vezes, até por cansaço de nós próprios, acabamos invariavelmente por falar de política, e por decidir o que fazer com o país, especialmente se não sabemos o que fazer de nós próprios. Da mesa ali ao fundo, o Macedonio Fernández sugere que o problema se impõe pelo facto inescapável de que cada um de nós sabe profundamente duas ou três verdades complexas, mas os nossos contacto...
2024-12-06
3h 26
Enterrados no Jardim
Serenata de três vadios sob a chuva do futuro. Uma conversa com Bruno Peixe Dias
O mundo tornou-se novamente exterior, absurdamente exterior, ao ponto de nos causar arrepios, mas a nós, hoje, tudo nos faz mossa. Nestas transfusões de sangue amarelo recebidas dos sistemas digitais, estamos cada vez mais uns bichos de aviário. E dividimos tudo em categorias, e temos infinitos protocolos de segurança, de desinfecção. Cá dentro, aquilo que nos provoca cócegas são as luzes, os sons, todas essas cores a pintalgar o cenário, e os ecrãs com as suas informações habituais. "Superfícies, superfícies, não há perigo se as atravessarmos, se estivermos nel...
2024-11-29
3h 19
Enterrados no Jardim
Heroísmos não, por favor. Uma conversa com Vítor Belanciano
É preciso passarmos bem longe do heroísmo para irmos um pouco além das noções de superfície, desde logo a essas zonas turvas onde o nome sem glória aguarda a sua ocasião, mas para isso, para mergulharmos naquela experiência dos homens infames, não tanto por infamados, mas antes por não gozarem o prestígio e a fama que, aparentemente, todos não conseguem, hoje, deixar de ambicionar, para isso, como dizia o outro (mas qual deles?), para isso o indivíduo com um nome glorioso, o autor como proprietário da "sua" escrita, em sum...
2024-11-22
3h 14
Enterrados no Jardim
Em breve toda a literatura vai saber a frango. Uma conversa com Guilherme Pires
O descarado elogio que hoje é feito das humanidades serve-se amiúde de oposições bastante patéticas face ao regime tecnológico, mas a verdade é que os clássicos tendem a ser dissolvidos em soluções ácidas até deles só restarem esses elementos ou citações mais célebres que podem ser instrumentalizados, como slogans, circulando hoje nas redes sociais como moeda de troca de uma sabedoria proverbial, cada vez mais distante do contexto e da tensão que lhes é própria, até ser possível utilizá-los para se dizer tudo e o seu contrário. Num exame implacável desse exercí...
2024-11-15
3h 21
Enterrados no Jardim
Enclave, de Maria Lis, na Pó de Vir a Ser, em Évora
Registo do lançamento de "Enclave", de Maria Lis, no dia 9 de novembro, em Évora, com apresentação de António Guerreiro Maria Lis foi à procura de objectos sem uso, remetidos aos dias passados, uma peneira, uma caixa de comprimidos, uma balança para cartas, um limpador de espingardas, algumas pedras, uma goteira e outras miudezas e entregou-os a várias crianças para lhes perguntar: e com estas coisas que já temos, também podemos fazer outro mundo? Uma geografia de entrelinhas, de silêncios e de mãos-na-massa, as imagens de Ana Filipa Correia, os objectos à espera de ânimo e o texto e...
2024-11-11
1h 17
Enterrados no Jardim
O Apocalipse Alegre (Remix). Uma conversa com Ana Maria Pereirinha
A morte não é mistério nenhum, já o facto de os vivos hoje terem tornado a vida tão insípida que os espíritos do passado se recusam a renascer, isso sim deve angustiar-nos. Perdemos o direito às repetições capazes de produzir alguma harmonia a partir da textura do quotidiano. O próprio tempo parece ter visto a sua natureza mudar, e a duração deixou de ser sentida como no estado normal das coisas. Hoje somos existências em suspenso, e mesmo os eventos mais drásticos não chegam para nos transtornar verdadeiramente. Diante da catástrofe, empa...
2024-11-01
3h 18
Enterrados no Jardim
O país em lágrimas no funeral de um autocarro. Outra conversa com o Changuito
Quando é que um político ou algum dos nossos banqueiros se indispõe de vez com a mentecapta ironia disto tudo e nos vem ler alguns dos poucos versos realmente espinhosos que Fernando Pessoa nos dirigiu? Quando é que um deles passa realmente ao ataque, e lança em tom ríspido aquele: "Estupores de tísicos, de neurasténicos, de linfáticos,/ Sem coragem para ser gente com violência e audácia,/ Com a alma como uma galinha presa por uma perna!" Mas quando é que, em vez desse ar compungido de quem vive os seus dias num perpétuo luto, e a...
2024-10-26
4h 16
Enterrados no Jardim
Música electrónica, recreios agrícolas e lições de magia. Uma conversa com Mariana Pinho
Por uma vez, e contrariando o Bowie, podíamos deixar de ser heróis, ou, pelo menos, de representar a realidade de forma anã para nos fazer sobressair. Contudo, às vezes parece ser esta que se encolhe ou retira, que se esquiva das nossas representações. Neste consumo constante de lendas pessoais, de fanfarronadas e galhardias histriónicas, estamos a perder todo o tesão por esse ideal de vivermos embrulhados uns com outros. "O coração é uma arte difícil", assinalava algures José Amaro Dionísio, adiantando que, tirando essa proximidade conquistada a palmo, "tudo o resto é a crédito". Em te...
2024-10-18
3h 23
Enterrados no Jardim
Chamar a crítica para a mesa dos canibais. Uma conversa com Carlos Maria Bobone
Não se chega a uma versão contemporânea da pergunta "o que é um leitor" sem o medir, avaliando as suas escolhas, face à proliferação de livros que hoje se publicam. E isto porque, como notou Benjamin, "antes de as pessoas chegarem ao ponto de abrir um livro, já um tão denso turbilhão de letras mutáveis, coloridas, conflituosas caiu sobre os seus olhos, que as possibilidades de penetrar no silêncio arcaico do livro se tornaram escassas". Ele ainda adianta que "os enxames de gafanhotos da escrita que hoje encobrem o sol do suposto espírito aos habi...
2024-10-10
3h 09
Enterrados no Jardim
Sessões de casting para as trincheiras. Uma conversa com Maria Brás Ferreira
Alguém faz algo que ninguém compreende, um acto que excede a experiência de todos. Esse acto não dura nada, mas tem a qualidade pura da vida, e, não sendo narrativo, é a única coisa que faz sentido narrar. Hoje abundam os narradores, aranhas senis balouçando nas suas teias de tinta, contando uma e outra vez as mesmas histórias. Falam muito das coisas que fizeram, relatam-nos tudo o que os motiva e aquilo que ainda esperam fazer. Nem precisam de se escutar uns aos outros, o seu número apenas exprime uma situação sem saída, uma m...
2024-10-04
5h 00
Enterrados no Jardim
A tentação de cair no erro alheio. Uma conversa com Joana Lima
Falar-se da vida por estes dias é como falar da corda na casa de um enforcado. Onde é que isso nos pode levar? A frase é do Vaneigem, mas cintilou mais numa das primeiras críticas sobre os Joy Division, alguém que se soube muito cedo condenado ao dar com aquele som de ressaca de anfetaminas de uma cultura que teve o pressentimento de que a vida, na sua totalidade, ficara suspensa numa negatividade que a corrói e a define formalmente. "O mundo e o homem, enquanto representação, cheiram mal como carniça e já não há nenhum deus por per...
2024-09-27
3h 21
Enterrados no Jardim
A liturgia dos fogos na época de Job
Em geral, as notícias que nos chegam da realidade lêem-se como episódios de uma qualquer ficção descontrolada, e depois de nos provocarem alguma indisposição, levam cada um a subscrever e afundar-se nesses canais de inanidades. As pessoas já nem se aferram a um resquício de esperança, simplesmente escavam as suas vidas como buracos, submergem-se nos seus delírios e compulsões. Perdemos o direito à acção, mesmo na sua forma desesperada. As nossas bibliotecas vão florescendo em torno de ruínas, prestando testemunho das muitas realidades que desapareceram para sempre, e deixando em nós a sensação...
2024-09-20
3h 05
Enterrados no Jardim
Marialvas, beatos, estrategas do armário
Ao que parece a maior ambição do português é deixar de o ser. Ele viaja para ir descobrir a sua verdadeira nacionalidade, e adora cumular esses traços admiráveis dos povos como ele os fantasia e reconhecer-se aqui e ali, como quem recolhe diferentes opções num buffet. Portugal é o lugar onde o seu exílio se cumpre, e o país serve apenas para tornar ainda mais pronunciado o contraste, para engrandecê-lo. O herói português tem de ter pelo menos uma costela estrangeira, e fala por referência a este sítio como o lugar onde a ave...
2024-09-12
2h 52
Enterrados no Jardim
A guerra de tronos e os paquidermes ilhados
Antes de partirmos, todos entendemos que as férias poderão elevar a um estatuto lendário as nossas existências neuróticas. Faz parte das fantasias pequeno-burguesas ir tracejando nalgum canhenho as metas secretas da vaga peregrinação que cada um se promete. Para não desiludirmos o quadro que nos envolve, também fomos ver essa coisa do verão, esse negócio familiar que impinge desde há décadas, e com indesmentível sucesso, retratos e molduras que, passados anos, têm essa capacidade de apanhar-nos tão maltratados que nos pomos a remexer no passado e acabamos embev...
2024-09-04
2h 41
Enterrados no Jardim
A guerra para derrubar a Torre de Babel. Uma conversa com Hugo Maia
Antes de vos darmos férias por tempo indeterminado, e de nós mesmos irmos por aí fazer figuras nas estâncias balneares ou, simplesmente, como ursos polares que, por serem incapazes de saltar das placas de gelo, desenvolvem essa forma de camuflagem que passa por se disfarçarem de turistas de modo a colherem este ou aquele benefício fiscal, atiramos mais uma vez o bote para vasculhar com os remos a superfície de um naufrágio de tal modo vasto que tem sabido passar desapercebido. E, porque somos teimosos, voltamos às questões da língua, e com a ori...
2024-07-20
3h 18
Enterrados no Jardim
Os devoradores de épocas. Uma conversa com António Hess
"Neste tempo que se tornou uma ciência, um conhecimento criminoso da vida" (André Roy), seria preciso resgatar de novo o sentido original, o ímpeto nascente, junto às fontes, e não ficarmos remetidos a uma cultura de remastigação, e de reproduções inertes, ao ponto de vivermos imersos em ecos de ecos, num ruidoso enredo que, sem a menor clareza de ideias, apenas exprime impotência. Alguém mais vincava como "todos os amantes partilham a sua infância e são donos uns dos outros". Mas se entre nós alguém notou que estava na hora de chamar o amo...
2024-07-12
3h 24
Enterrados no Jardim
A China e o nosso espectadorismo distante. Uma conversa com Tiago Nabais
Hoje o mundo não sabe estar quieto. Em vez de o trânsito ser de ordem cultural, o regime da competição introduziu um elemento de constante disputa, conflitos de influência e poder. As nações procuram extravasar e invadir-se, e é próprio desse quadro a ideia do revisionismo, a forma como o esforço de subsumir o passado leva a que os nossos juízos procurem consumir toda a história anterior. Talvez pior do que o roubo de bens culturais de outras culturas e povos é essa forma de traficar os objectos culturais, sejam eles a iconografia r...
2024-07-05
3h 29
Enterrados no Jardim
Fazer do verbo carne. Outra conversa com Luís Filipe Parrado
São demasiadas palavras. Parece que nos barricamos atrás delas. E a relação que mantemos com os textos parece cada vez mais da ordem da frieza, do distanciamento, uma forma de se prometer a certas causas e ideias, adiando o momento de deflagração. Escrever não passa assim de integração, legitimação, reconhecimento, academização nos palácios, glória na memória, como nos diz Quignard. Se parece haver mais erudição do que nunca e o nível geral dos literatos até revela uma certa elevação, depois as inspirações revelam-se vazias. A cultura não parece apo...
2024-06-29
3h 46
Enterrados no Jardim
A fábrica de funcionários. Outra conversa com Frederico Neves Parreira
“Se a estupidez não se assemelhasse, a ponto de se confundir, com o progresso, o talento, a esperança ou o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser estúpido”, isto foi notado por Musil, mas adiantaríamos que a característica que distingue a estupidez produzida pelo nosso tempo é esta: a sua adequação às próprias noções de sucesso. Afinal, este é um tempo que se destinou ao desastre, e, assim sendo, é natural que as hierarquias nos ponham diante de autênticas conspirações de estúpidos. Só se afirmam esses seres incapazes de uma consciência clara do ridículo das suas...
2024-06-21
3h 37
Enterrados no Jardim
A função dos inimputáveis. Uma conversa com Victor Gonçalves
“Porque os portugueses são de um individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista”, dizia há dias Jorge de Sena, um dos últimos que arrancou a voz dos sepulcros e do nosso conformismo para dizer alguma coisa num discurso do 10 de Junho que nos fizesse ferver o sangue. O que é próprio de um bando de filhos da puta é este “desej...
2024-06-14
4h 00
Enterrados no Jardim
Os gatos não se olham ao espelho. Uma conversa com Luís Mendes
O capitalismo serve-se de uma mão cheia de comprimidos de viagra na hora de falar de erotismo, e prefere discutir as preferências em termos de pornografia ou particularidades sobre a penetração do que se recriar em jogos de sedução. Havia aquele tipo com uma eficiência brutal nas saídas à noite e que se limitava a aproximar-se dos alvos e dizer-lhes “queres foder?” Vendo isto alguém lhe disse: Deves estar sempre a levar estalos… e ele assentiu, que não era infrequente, mas que era o preço que pagava de bom grado sendo que com esta abord...
2024-06-07
4h 36
Enterrados no Jardim
Camões & Taylor Swift. Uma conversa com Hélio Alves
Quando se fala de poesia são aqueles que desatam a brilhar e acham sempre que é com eles que, ao mesmo tempo, se fazem de desentendidos, que nunca sabem bem o que isso seja, até porque lhes convém poder pôr qualquer arrotito lírico nessa conta pela qual ninguém se responsabiliza nem há quem a pague, e lá vão levando fiado e gozando o prestígio dos que elevaram a canção a um modo de provocar um estremeção na realidade. Mas se até um figurão reputadíssimo como Vitor Aguiar e Silva percebeu como os p...
2024-05-31
3h 08
Enterrados no Jardim
As musas obscenas. Uma conversa com Pê Feijó
Diante deste regime cultural dos que sempre se recomendam (a si mesmos e uns aos outros), dos que em todas as situações encontram forma de capturar-nos apenas para se mostrarem infinitamente virtuosos, desses que, assim, se servem da sua virtude para masturbar os seus vícios (Michaux), somos levados a pensar no que Flaubert respondia quando lhe perguntavam que espécie de glória ambicionava mais: “A de um desmoralizador.” É um problema de inspiração, das matérias e exemplos para os quais nos voltamos, procurando sempre o teor edificante nas nossas manifestações e comportamentos. Todos se querem subversi...
2024-05-24
2h 49
Enterrados no Jardim
E se este país existisse? Uma conversa com Maria Etelvina Santos
Que pavor este de porventura não existirmos, não a ponto de isso significar um abalo na vida dos demais. Insistimos sem saber a favor do quê, sem ficar claro exactamente que resistência é essa que começa por degradar-nos ao adulterar os ecos daquilo que dissemos. Devolvem-nos reflexos mutilados, degradam todas as formas de vida ao serem acolhidas entre as mortíferas hipocrisias do campo cultural. Como refere Owen Sleater, "uma das maneiras de encobrir ou aniquilar uma forma é instituí-la. A metodologia de instituir corresponde a um cisma na forma, a uma separação entre o seu modo de...
2024-05-17
3h 55
Enterrados no Jardim
A evidência do lixo. Uma conversa com Nuno Costa Santos
O ruído assumiu uma preponderância de tal ordem que o seu ritmo se impõe como uma forma de coacção, uma moral que engole e, sem digerir nada, devolve tudo na forma de uma massa de detritos. Com todos esses juízos precipitados, tendenciosos, é raro darmos com um espírito lúcido, capaz de reservar uma relação de espanto e estranheza face ao mundo, repelindo a consciência comum. Quem se confronta realmente com a realidade e a julga pelos seus próprios meios, de acordo com a sua experiência e sensibilidade, acaba ilhado, vendo-se cerca...
2024-05-10
3h 28
Enterrados no Jardim
Feira Internacional da Miséria Local. Uma conversa com Joana Matos Frias
Essa coisada da literatura, onde é que isso já vai? Era para ter sido um extravagante ensaio geral entre os escombros da realidade, mas acabou como mais um antro para o recital dessas cansadas passagens obrigatórias, e o que nos escondem são esses exaltantes devaneios provocatórios, tudo é feito de forma a soterrar os melhores exemplos de um heroísmo indigesto. Passamos mal, cada vez pior, enquanto vivemos de castigo na sórdida intriga dessas réplicas medíocres, desses serviços de enciclopédia e de arrumação precária de alguns nomes nos balanços e panorâmicas da l...
2024-05-03
3h 52
Enterrados no Jardim
Crise climática e hipocrisia pornográfica. Uma conversa com Leonor Canadas
Emergência, crise, desastre, colapso, extinção, palavras, palavras, palavras, o que podem elas fazer ainda se a violência maior reside precisamente nesse encadeamento azucrinante, nesse modo de alimentar um frenesi de cenários catastróficos sobressaltando-nos, instrumentalizando a indignação, até nos entregarem à indiferença e ao cinismo, de tal modo que é isso o que hoje transparece em todas as coisas, à medida que elas perdem a sua imagem, o seu espelho, o seu reflexo, a sua sombra, cada vez mais distantes da sua substância, incapazes de oferecer alguma resistência a essa tradução e aceleração impiedosa, arrast...
2024-04-26
3h 32
Enterrados no Jardim
Comércio de literatura para cansados. Uma conversa com Gonçalo M. Tavares
Consideremos aquilo que se espera hoje do escritor face à vida literária que nos resta, como este está condenado a exibir-se como uma espécie de fantasma em nome de um prestígio ou até de uma função que caiu em desuso, como um defunto que aceita fazer esses papéis de figuração nas cerimónias fúnebres e encomendas das almas que compõem o quadro cultural. Em geral, todos os agentes promotores, incluindo os editores, assumem aquela postura muito compungida, e colaboram com o protocolo dessa infinita despedida, sempre assustados com qualquer coisa que modifique os seus hábito...
2024-04-19
3h 39
Enterrados no Jardim
Desposar o cadáver. Uma conversa com Ricardo Cabral Fernandes
A juventude devia importar-nos? E os jornais? Ou a falta dessas noções que iam abrindo caminho a uma renovação, a uma suspensão das velhas crenças e hábitos, dessa realidade que é usada como um argumento para vivermos sufocados? Talvez as respostas sejam o problema. Talvez as perguntas pudessem ser o suficiente. De tal modo impertinentes, umas atrás das outras, até que os que oferecem sempre as mesmas lérias vissem a sua convicção humilhada. Fazer perguntas para atazanar, para lhes dar cabo da paciência e, enfim, também do esquema. Tão seguros que estã...
2024-04-12
3h 37
Enterrados no Jardim
Quem se destrói não se cansa. Uma conversa com Nuno dos Santos Sousa
Na década de 1960, José Gomes Ferreira falava de "cerca de trezentas pessoas heróicas que andam de um lado para o outro, em Lisboa, a fingir cultura". Não estamos seguros sobre os números actuais, uma vez que se tornou bastante difícil realizar censos num tempo de tal modo desvitalizado, sem recreios, ringues ou arenas, e é, de resto, esse um dos aspectos que provocam mais frio, a sensação de não sabermos quantos somos, nem com o que contamos. E se não falta garganta aos actuais mestres de cerimónia, depois se nos deixamos levar e entr...
2024-04-05
3h 44
Enterrados no Jardim
A miopia em que nos escondemos. Uma conversa com Maria Antónia Oliveira
Por cá, nas representações que fazemos de nós próprios, cedemos demasiado depressa ao registo da paródia mais alarve. É um modo de nos defendermos do nosso encanto, das primeiras e mais honestas ambições. Recosemo-nos no interior dessa carapaça desgostante, e assim nos vamos aliviando das exigências que chegámos a alimentar. Hoje, qualquer reflexão que se manifeste entre nós aparece antes de mais como paródia, e é muito difícil ir além dela. “As asas voltam a entrar no pássaro para o atar”, como escreveu Éluard. Seria preciso que o país aderisse, não aos...
2024-03-29
3h 44
Enterrados no Jardim
À Espera de um like de Godot. Uma conversa com Vania Baldi
Uma ilustração adequada da condição mais comum dos nativos digitais seria uma perspectiva de campos a perder de vista dominados por uma espécie de plantação onde os corpos estivessem alojados em casulos, como larvas incapazes de completar a sua metamorfose, diluindo-se aos poucos numa espécie de banho amniótico, exercitando o seu suposto potencial através de uma infinita sucessão de projecções virtuais. Passeando por ali, ouvir-se-á uma toada ou murmúrio que vai de boca em boca, com variações subtis entre um perpétuo suspiro ou bocejo, entrecortados por alguns gemidos de deleite...
2024-03-22
3h 01
Enterrados no Jardim
Construir barragens para desacelerar o tempo. Outra conversa com Diogo Duarte
Hoje tudo nos aparece escaqueirado pela palavra mais fraca, pelas noções mais frágeis, mas que se infiltram e servem como uma razão e um denominador comum para essa massa opaca dos monstros práticos. E se todos anseiam desesperadamente por vencer o impasse azucrinante em que vivemos, talvez hoje fosse politicamente mais relevante se congeminássemos um verdadeiro bloqueio, a construção deliberada de um impasse. Dan Fox, um escritor e músico nova-iorquino, sugere que se possa abrir espaço através de uma cuidadosa deflação temporal, uma vez que o mais difícil parece ser enc...
2024-03-15
3h 34
Enterrados no Jardim
Uma Outra Educação. Conversa com Jorge Ramos do Ó
É preciso saber andar pelo passado, alimentarmo-nos dele, e não como qualquer coisa morta, mas como matéria que é possível constelar com o presente, reinterpretar, sem repetir os mesmos gestos, caindo na prisão de um encanto mítico. Em tempos, a escrita e a leitura, sendo actividades vagarosas, reconheciam que a tarefa que se nos impunha era avançar para trás, na direcção da coisa desconhecida no interior da própria cultura. Era preciso saber perder o tempo em busca do tempo perdido, e valer-se de toda essa abandonada riqueza. Outros já souberam a palavra que te falta...
2024-03-08
2h 13
Enterrados no Jardim
Abrir caminho a golpes de fígado para escapar do cemitério das letras. Conversa com Rui Lopo
Para preservar o desejo hoje sentimos uma necessidade de fuga, de escapar aos ambientes onde o vazio é disfarçado com recurso a formas de pirotécnia, a essas redundâncias esterilizantes que tomaram conta dos modos de representação culturais, tendo-se permitido que os alicerces da literatura portuguesa apodrecessem, acelerando o esquecimento sobre o que foi feito antes para que os nossos generais de aviário pudessem beber a consagração até às fezes. Tem sido cada vez mais difícil desenvolver esforços no sentido de dissolver aquela estupidez tradicionalista que se instala como um bolor em torno das figuras q...
2024-03-01
3h 31
Enterrados no Jardim
Futebol, o tubo de ensaio para os novos fascismos. Uma conversa com Luís Filipe Cristóvão
Hoje é impossível escapar ao futebol, a essa redução essencial da tragédia a um espectáculo que segrega uma mitologia degradante, cercada de um fervor e de formas de culto alienantes, providenciando uma linguagem que chega a todos, um discurso que invade até o campo da religião, chamando a si termos como catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, ressurreição, veneração, inferno, o diabo ou a mão de Deus. À medida que o adepto se torna um fiel, benzendo-se em nome do seu clube, sacrificando-lhe e aos seus ídolos de chuteiras as suas preces, super...
2024-02-23
2h 54
Enterrados no Jardim
Subsídios para uma ecologia da literatura lusa. Conversa com Paulo Bugalho
Goliarda Sapienza costumava dizer que os mortos deixam de ter razão se depois da sua morte ninguém os defender. Hoje essa advocacia fulgurante e desinteressada tem vindo a degradar-se, uma vez que os vivos estão demasiado empenhados em promoverem-se a si mesmos, a ponto de fazerem tábua rasa da memória e da tradição. Aquela autora italiana estava, ao mesmo tempo, bem ciente de que o tempo hoje é substancialmente antiliterário, e que vivemos num mundo que tende a estar todo cheio, permanentemente ocupado, distraído. Entre nós a única virulência que parece restar...
2024-02-16
4h 14
Enterrados no Jardim
O Anticristo e um Job lusitano entram num bar onde Rui Nunes tira as cervejas
Este episódio surge como o nosso especial de Carnaval, depois de um convite da Livraria da Lapa, e com a proposta de lançarmos dois livros de naturezas bastante diversas, ainda que não inconciliáveis, de uma assentada. Se aquela tarde não for relembrada por mais nada, talvez o seja por uns poucos como um encontro num momento de desordenada suspensão, num momento em que, de diferentes formas, procurávamos ainda sobreviver sem nos perdermos numa "atmosfera literária de morna mediocridade", enquanto filhos de uma época merdonha, em que parece cada vez mais difícil vislumb...
2024-02-11
2h 15
Enterrados no Jardim
História do Cerco de Lisboa (e arredores). Uma conversa com António Brito Guterres
De algum modo, hoje todos nos sentimos em perda, num luto sem um objecto certo, uma angústia difusa, convencidos de que somos incapazes de extrair um nexo desses dez mil farrapos de desinformação, condenados a alguma forma de neurose. Supomos que a realidade se tornou demasiado intensa, um enxame fervilhante cuja dispersão celular derrota a nossa capacidade de apreensão. A dolorosa imprecisão de todos os diagnósticos atravessa-nos uma e outra vez, desgastando-nos, e só raramente chegamos a compreender que, na verdade, isto não é próprio da realidade, mas de todas essas hipóteses virtua...
2024-02-10
3h 38
Enterrados no Jardim
Exilados do próprio corpo, desterrados do desejo. Uma conversa com Joana Bértholo
O regresso ao corpo seria a Odisseia dos nossos dias, pelo modo como vivemos dispersos, alheados, infinitamente desgastados, carregando um cansaço crónico, "ou melhor, de cronos", como escreve Joana Bértholo logo no arranque do seu livro mais recente, "O meu treinador". Estamos todos cansados de lidar com o tempo, com as incessantes compulsões a que vivemos submetidos, sentindo a nossa atenção consumida, constantemente aliciada, cativada ou capturada, comprada, subornada, defraudada, pervertida, presa. Como se lê no editorial do mais recente número da Electra, dedicado a este tema, "sem atenção, o mundo torna-se disperso...
2024-02-02
3h 26
Enterrados no Jardim
Uma última rave antes de Auschwitz 2.0. Outra conversa com Luhuna Carvalho
Quando chegar a altura de erguermos o nosso próprio muro das lamentações, em tantos dos bilhetes deverá ler-se a muita pena de não termos feito mais festas, levado mais gente para a cama, talvez porque essa sim parece ter sido uma lição decisiva, a de que não poderíamos levar uma existência artística ficando limitados ao dia, mas deveríamos ter procurado por todos os meios alcançar a vida nocturna da humanidade bem como os seus mitos e símbolos. A embriaguez, o sonho capaz de pôr em causa a realidade do di...
2024-01-27
3h 03
Enterrados no Jardim
Sessões espíritas numa cidade assombrada. Conversa com José Smith Vargas e Fernando Ramalho
Querem convencer-nos de que estamos encurralados na estação morta e que daqui não há saída, que não nos resta alternativa senão seguir adiante e acatar os maus modos e destratos da época que nos calhou viver. Enquanto isso, enquanto prosseguem na sonegação dos melhores espíritos desta geração, garantem-nos que o problema é que nos falta o génio e a invenção ou o grau de empenho necessário. Pintam-nos como um bando omisso, ou então assemelhando-nos a uma multidão de palhaços miseráveis, abandonados na ponte, olhando para baixo, para o nosso ci...
2024-01-18
3h 26
Enterrados no Jardim
O regresso dos vilões à política. Uma conversa com Miguel Faria Ferreira
É das poucas liberdades exaltantes que ainda nos restam, a de nos demorarmos a divagar rente às feridas e às transformações, e de nos desfazermos de inúteis particularidades para mergulharmos no que é comum. Também os homens formaram bandos, numa firmeza de assalto capaz de fazer da realidade outra coisa, e houve aqueles que só entendiam a sua força enquanto partículas elementares: "Nós nascemos vários e morremos um só." É um ideal que soará demasiado estranho aos deste tempo, mas restam ainda sinais, trechos crepusculares num registo delirante, testemunhos que persistem nos muros expectantes, erodidos pelas paixões ma...
2024-01-09
3h 21
Enterrados no Jardim
Revelações a partir do mictório das letras lusas. Uma conversa com João Oliveira Duarte
Se o nosso tempo não nos diz puto, todos os dias parecem ser domingo neste povoado à beira-mar e que eles se esqueceram de bombardear. Era mais ou menos isto que ouvíamos de uma dessas canções da nossa adolescência, e de algum modo batia certo, pois a sensação de desenraizamento deixa margem a uma estranha ânsia de aniquilação. É isso o que secretamente desejávamos quando se falava num ano novo: que se pudesse limpar com um pano molhado aquilo que ficou escrito no quadro, essas noções limitadas e desidratadas que nos obrigavam a decorar. Hoje f...
2024-01-04
3h 08
Enterrados no Jardim
Reaver a escala entre pássaros e ditadores. Conversa com Andreia Farinha
Dantes os pássaros alimentavam-se da carne dos capitães que morriam do outro lado do mundo. Dados como perdidos, a sua lenda desfazia-se em migalhas sustendo esses seres que não têm começo nem fim. A vida aproveita-se deles como de mais nenhuma outra imagem. Esses bandos, tomando o ar do seu canto, deixando ao vento um ar de espanto. E ensinam-nos tanto que, vislumbrando o seu Cabo Finisterra, Manuel de Castro anotou isto: “Tudo tomou rumo diferente do previsto/ – pouso as mãos nas asas quebradas dos pássaros/ de quem o sentido inútil se fez vida...
2023-12-28
3h 38
Enterrados no Jardim
Ensaiar formas de dizer "Não". Conversa com Maria Lis e Fernando Ramalho
Nas vésperas deste episódio, o Frederico tomou-se de um febrão daqueles que até os ossos amolecem, e que excitam o tipo de delírios que depois não se podem reproduzir, assim, amarrado à cama como um possuído, desta vez deixou o lugar ao Fernando Ramalho, espécie de Robinson destas saídas à cata do inesperado. Numa altura em que só precisamos de uma rajada mais forte para cair da muralha, abandonar a meio o turno, aí onde cumprimos funções face a um regime cada vez mais precário, cada vez mais sórdido, e que ainda assim n...
2023-12-22
4h 05
Livraria Tigre de Papel
Nuno dos Santos Sousa, Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho | FICÇÃO-contra-FICÇÃO | Fernando Madureira (16 Dez 2023)
FICÇÃO-contra-FICÇÃO | Fernando Madureira – Desapareci de mim | conversa com Nuno dos Santos Sousa, Diogo Vaz Pinto e Fernando Ramalho. 16 de Dezembro de 2023. (O pequeno vídeo com Fernando Madureira referido por volta do minuto 24, e que foi reproduzido durante a sessão, pode ser visto em https://arquivos.rtp.pt/conteudos/manifestacao-dos-trabalhadores-de-o-seculo/.)
2023-12-21
1h 20
Enterrados no Jardim
O despudor das paisagens. Uma entrevista a Álvaro Domingues
A promessa de um mundo que começa com uma catástrofe não é necessariamente contraditória, e, no entanto, o futuro ainda só parece fazer-se sentir à distância, e alcança-nos por meio de vislumbres, como um pressentimento. Entretanto, enquanto tudo ao nosso redor lhe resiste, é possível folhear um caderno e ler sobre as variações possíveis do que nos espera. Muito do que está em causa exige de todos um pesado sacrifício e, por isso, uma coragem que terá de ser inventada de novo. Pasolini dizia isto a esse respeito: "Penso que é necessário educar as novas ger...
2023-12-14
3h 38
Enterrados no Jardim
São merdas meu senhor são merdas. Uma conversa com Nunes da Rocha.
No Telhal ninguém lê Camões, e é pena. Talvez fizessem mais sentido dele. Cá fora os usos que se lhe dão, diga-se de passagem, também não são melhores. Até nos vícios já fomos mais sinceros. Já bebemos com outra honestidade, exactamente por nos sabermos sem escapatória, desertávamos intimamente pondo-nos a inventar com uma ferocidade que por estes dias tem andado desaparecida. Por indisposição do olhar e consequente nervura no pensamento, o nosso sentido de aproveitamento da realidade parece ter metido baixa, sofre de ansiedade, vertigens do camandro. As propostas que chegam entre as p...
2023-12-06
2h 29
Enterrados no Jardim
Emissários do êxodo ou da extinção. Uma conversa com Rui Lage
O mundo (este ou outro qualquer) é o conjunto de imagens-tendências projectadas a uma mesma velocidade, essa a que o olho humano se pode adaptar, captando-a, do mesmo modo que um receptor de rádio conectado a uma determinada frequência capta modulações que constroem sentido nessa banda sonora. Mas se hoje tudo começa a parecer-nos excessivo, se há ruído demais na frequência, se as imagens se atropelam e nos dão uma perspectiva grande demais para ser abordada, acabamos por nos sentir humilhados. É tão difícil provocar mossa. Em qualquer direcção que se olhe, perde-s...
2023-11-30
3h 29
Enterrados no Jardim
Os aristocratas do fim do mundo. Uma conversa com Luís Gomes
Traficantes de sinais que persistem entre a escória de cada época, cabe aos livreiros um papel fundamental nas operações de resgate e nesse cultivo de uma esperança que, ao contrário do que se pensa, não nasce de uma visão tranquilizadora e optimista, mas de uma laceração da existência vivida e confrontada depois de se lhe arrancar todos os véus. É precisamente isto o que gera uma irreprimível necessidade de resgate. A esperança é, afinal, um conhecimento completo das coisas, e não apenas de como surgem e são, mas também daquilo em...
2023-11-23
3h 31
Enterrados no Jardim
Vampiros, zombies, vírus e outras variações sobre o desastre desta nossa grande época
Este é o primeiro episódio sem a Joana, que não quis mais andar por este jardim cativo de uma feira bruta com menos diversões que tormentos. Bateu com a porta, por isto e por aquilo. Fica-nos esta necessidade de remorso que não altera nada, e se o mais indicado talvez fosse cumprir um certo luto, para quê vir agora observar protocolos quando até aqui o impudor foi o único heroísmo a que nos entregámos, lavando em público a roupa suja da época. Coube ao Frederico Neves Parreira pegar na outra pá, e é possível que isto ag...
2023-11-14
1h 43
Enterrados no Jardim
Demitam-se também os portugueses. Conversa com Jacinto Godinho
Agora que todos os raciocínios são trincheiras, que um homem que se dê ao trabalho de pensar por si ver-se-á empurrado para as catacumbas de si mesmo, sendo condenado ao isolamento, agora que a quantidade impede qualquer revolta contra ela, quem se esforça por dizer palavras verdadeiras não consegue evitar soar ridículo. Ainda andamos de volta dos jornais, guiados pelos avisos de Karl Kraus contra essa "magia negra", sendo que este se deu conta um dia de que a vida já não passava de uma cópia da imprensa: "A imprensa é um mensageiro? Não, é o ac...
2023-11-08
2h 39
Enterrados no Jardim
Três tristes tigres de roda do prato de espinhas do jornalismo. Conversa com Nuno Ramos de Almeida
Entre os de papo cheio e os manga-de-alpaca que tornam os corredores ainda mais longos e bafientos neste regime miserando, vamos buscando quartos com os estores em baixo, onde "conferenciamos em surdina com as nossas almas, isto é, as peças dos equipamentos espatifados que os nossos inimigos nos deixaram" (Sean Bonney). Quando se vai em campanha, o jornalismo é a actividade dos batedores, dos que desenham mapas à vista, e é certo que nos aprazaria partirmos daqui, mas só nos restam uns barcos desconjuntados, de proa levantada, enterrados na areia. Continuamos a escutar os que compuseram as suas ideias numa ordem tal que não...
2023-10-31
3h 35
Enterrados no Jardim
Um país em liberdade condicional. Entrevista a Carlos Matos Gomes
Nove séculos depois, com tanto desaire, tantos tombos e ilusões a naufragar neste sangue, está difícil vir tirar do prego as três sílabas que em tempos cunhámos em cobre e nos foram devolvidas em plástico, esta vaga pertença sobre a qual vemos acumularem-se juros impossíveis de saldar na loja de penhores inglesa onde a deixámos, temporariamente apenas, só enquanto nos curávamos de outra carraspana. De lá para cá, ficou tudo a preto-e-branco, só do estrangeiro é que ainda apanhamos uma emissão a cores. Este país que é uma imensa culpa, mais q...
2023-10-19
3h 09
Enterrados no Jardim
Do anarquismo ao pensamento mágico. Uma conversa com Diogo Duarte
Mesmo entre os que ainda pegam num jornal para o ler, em vez de logo o enrolarem para enxotar alguma mosca, há gente que só lê as páginas de desporto, outros só lêem as páginas de sucessos, outros dedicam-se aos horóscopos, alguns preferem as palavras cruzadas, e há também aqueles que vão direitinhos aos necrológios. Apesar de tudo, há ainda muita gente que não sabe ler, e, entre os que dizem que sabem, tantos passam ao lado de tudo o que importa, mas vão interiorizando a ideia de que é inútil resistir, tra...
2023-10-13
3h 13
Enterrados no Jardim
Zero em Comportamento. Uma conversa com Jorge Roque
Em breve a dor será tida como uma substância ilícita, devendo ser erradicada em regime preventivo com recurso a uma panóplia de fármacos, desde logo estabilizadores de humor. E quem a ela responder em público será alvo de punição. Não há direito a incomodar os que estão a gozar os benefícios de uma existência radiante, e não merecem ser confrontados com o desmazelo dos que se recusam a cumprir com o programa. Está em fase de teste a vacina contra todo o tipo de sofrimentos, os físicos e sobretudo os de...
2023-10-03
3h 38
Enterrados no Jardim
Rasgar um caminho à bordoada. Uma conversa com Eugénio Lisboa
Eça de Queiroz dizia que na sonolência enfastiada em que vivemos, num país onde a vitalidade humana apenas se conserva num egoísmo feroz e numa devoção automática, não nos é dado aspirar a uma existência propriamente, mas tão-só a alguma forma de expiação. Agora os abutres de serviço dizem-se muito empenhados em honrá-lo, mas vão-se esquecendo como, no ambiente de decadência endurecida que é o nosso, ele fez de tudo para abrir um caminho à bordoada, empenhado em ver se haveria um modo de pôr a galhofa ao serviço da justiça...
2023-09-27
3h 27
Enterrados no Jardim
Valsas entre sentenças de cinza e razões de vento. Uma conversa com José Miguel Gervásio
Com o transplante da existência para os domínios virtuais, o mais difícil é fazê-los acreditar na realidade. Vivem asfixiados em poços cegos, consumidores de juízos alheios, imersos num zumbido que se torna o predador engendrado pela espécie contra si mesma. São essas ficções infindáveis nas quais em vão procuramos qualquer coisa real para dar ao dente. Apetece citar Ernesto Sabato no seu Relatório Sobre Cegos: “Sempre me fez rir a falta de imaginação desses senhores que julgam que para descobrir uma qualquer verdade é necessário dar aos factos ‘as devidas p...
2023-09-03
3h 31
Enterrados no Jardim
Andar às lostras num ringue de mel. Outra conversa com o Changuito
Antes de irmos de férias (ou melhor, antes de vos darmos um período de tréguas), no nosso vigésimo episódio regressamos àquela que é em grande medida a casa da partida, casa de ecos pingados numa música de câmara ardente, casa cheia das marcas de velhos inquilinos, dos que não morrem sem dar luta, e que deixam para trás algum prego só deles, num canto uma ruinazinha que não há maneira de sabermos como resolver. E é com o Changuito que voltamos a ser relembrados daquelas noções mais básicas de como se entra num...
2023-08-15
3h 37
Enterrados no Jardim
Laboratório de extinção. Uma conversa com Manuel Bivar
Nos jornais diários e nos espaços de comentário onde todos os dias a realidade desaparece, enquanto o prestidigitador anda às voltas com ar atarefado a cozinhar uma sopa da pedra na cartola, lá vem a telenovela da anestesia com as catástrofes já habituais: juros da dívida em crescimento, novo corte de salários e pensões, aumento do desemprego, e o administrador de um hospital público que faz contas sobre o que fica mais barato – amputar pernas ou colocar próteses. À margem, num canto discreto, houve ainda espaço para uma pequena notícia. O Instituto...
2023-08-08
3h 29
Enterrados no Jardim
Nunca te foram ao cu. Uma conversa com Miguel Filipe Mochila
A vida não é aqui e só raramente nos visita, sendo este mais outro cenário que serve à encenação desses comoventes desenlaces de um mundo que vive de falsas esperanças, ficções hipócritas, dessas faustosas imposturas que, "com uma perversidade certeira, permitem ao sistema de poder do nosso tempo tirar a potência e autoridade a todas as formas que o desafiam, contestam ou lhe criam alternativas reais e ameaçadoras, conseguindo absorvê-las, acomodar, domesticar e falsificá-las, apropriando-se delas, mercantilizando-as, tornando-as instrumentos que prolongam e corroboram o poder que parecem contestar" (Alfonso Berardinelli). Um exemplo: as Jor...
2023-08-01
3h 38
Enterrados no Jardim
Bruxas, putas, cabras heréticas. Uma conversa com Luís Filipe Parrado
Dado o grau de inconsciência, a vida desinteressou-se de nós, e há uma nostalgia do túmulo que se sobrepôs aos nossos desejos. Sendo a realidade aquilo que é, sonha-se com vingança e, artisticamente, talvez esteja na altura de as musas nos darem cabo do canastro. Enquanto isso, aí fora tudo engendra bestas apressadas, industriosos monstros, ao passo que os mundos entrevistos e murmurados na cama enchem-nos de vergonha. Mas agora mais do que nunca era preciso que fosse posto a circular “um convite a não se levantarem esta manhã e ficarem com alguém na cama, a fa...
2023-07-23
3h 12
Enterrados no Jardim
O Ânus Solar e o Sol Negro na edição portuguesa. Uma conversa com Frederico Neves Parreira
Andamos a chafurdar em narrativas simplistas, enredos que servem de funil para a moral engarrafada, e há por aí juízos enlatados para todas as ocasiões, por outro lado, a literatura em geral, e o romance em particular, depois deste naufrágio miserável, sobrevive por aí em pequenas ilhas, enquanto no continente vão propondo à circulação toda uma linha de mediocridades híbridas que se alimentam dos resíduos da actualidade e das histórias pessoais. Como notava Milan Kundera, "a maior parte da produção romanesca de hoje é feita de romances fora da história do romance: confis...
2023-07-18
2h 57
Enterrados no Jardim
Ir colher laranjas ao pomar. Conversa com Alexandre Pomar
É o que dá andar nisto como quem sai à caça de quimeras: pedimos Quixote, sai-nos um Sancho, vamos aos gambozinos, damos com osgas domésticas, tínhamos visto por aí um crítico desaustinado e afinal damos com outro reitor da Universidade do eu-e-as-coisas-ao-meu-redor. Às vezes é assim. Filho de Júlio Pomar, teve as chaves da chafarica e fez um percurso privilegiadíssimo no jornalismo, impondo-se sobretudo enquanto crítico de arte, com bagagem e conhecimento de causa, sem alergias a desmontar essas cadeias de favores e modelos da imposição dos bonzos que nos querem enfiar pela goela. De qualquer mod...
2023-07-11
2h 45
Enterrados no Jardim
À Espera do Ultimato dos Educadores. Conversa com Maria do Carmo Vieira
Depois de ser dispensada do programa das aulas de português, estava na altura de trazermos de volta essa figura tão malquista como crucial d’Os Lusíadas, esse grande dissidente face aos desvarios de uma certa nobreza que continuamente nos leva a embarcarmos como ratos na nau catrineta das suas fantasias. Numa época de apoucamento da língua, de cedência a toda a ordem de facilitismos, manigâncias e baldrocas, convém mesmo expulsar quem tem muito claro onde tudo isto nos leva. “Lá vem a Velho do Restelo”, dirão alguns. “Por sinal velha e também do Restelo...
2023-07-03
2h 16
Enterrados no Jardim
Aquele em que fomos ao fundo arrastando connosco meio mundo. Conversa com Luís Miguel Rainha
Desta vez, e sendo o episódio 13, isto foi para a desgraça completa. Com uma boa zurrapa a afinar os instrumentos, saímos de submergível, e enfiámo-nos no mar arrastando literatos aos gritos pela mãezinha, a mandarem sms's e a baterem com as chaves e os anéis um morse muito aflito, com instruções sobre como preparar a edição póstuma do conteúdo das suas tantas gavetas. Fomos depressa ao fundo arrastando o meio literário que mais se oferece em todos os portos, e o nosso Ahab foi o Luís Miguel Rainha...
2023-06-26
2h 58
Enterrados no Jardim
O legado que fica nas toalhas das mesas de cafés. Uma conversa com Vladimiro Nunes
"Uma simples frase mais bela, um simples adjectivo mais acertado tem de atravessar imensas camadas de lama e esterco para enfim brilhar. As histórias da literatura só falam do brilho. Mas nunca da esterqueira donde emergiu. E é no esterco que sinto uma grande parte de mim", confessava Vergílio Ferreira no seu diário, e serve-nos isto como balanço quando há tanta resistência a que se fale dos aspectos mais rudes e sujos da edição, e certamente deslustrando os mitos e o prestígio quando o sector nas últimas décadas se viu tomado por uma engrenage...
2023-06-21
3h 20
Enterrados no Jardim
Génese do sindicato terrorista das letras. Uma conversa com Fernando Ramalho...
Temos tido poucos capitães no nosso espaço literário, poucas oportunidades de nos vermos guiados para alto mar ou sequer alta noite em enormes navios de espelhos, esses onde o tempo se confunde de tal modo que nos oferece o delírio de verdadeiras delícias quiméricas, esses capitães cujo grito ou o silêncio nos inunda o sangue e os nervos de tal modo, de tal modo que através dele todos somos capitães, e quando um entre nós se revolta há logo dez mil insurrectos. Fernando Ramalho, livreiro e dinamizador da Tigre de Pap...
2023-06-12
3h 02
Enterrados no Jardim
Suíte e Fúria. Uma conversa com Rui Nunes
A degradação também se faz de um infindável repertório de ecos, repetições que parecem vincar algo de decisivo, mas que, na verdade, vão corroendo, deslocando o sentido até este se tornar demasiado vago, inexpressivo. E, nisto, damos por nós em busca de uma voz que não proceda de um olhar emprestado, ou roubado. Como escreve Rui Nunes no seu mais recente livro ("Neve, Cão e Lava"), lêem-se "tantos poemas, tantos romances, que não passam de olhares emprestados, roubados". Não são os temas de uma escrita o que faz a diferen...
2023-06-07
2h 49
Enterrados no Jardim
”Um corpo sozinho é uma campa vertical”. Uma conversa com Vasco Gato
Cheira a sangue a mancha de vinho na toalha, e deve ser sinal de que a inteligência volta enfim a encarnar, a ter gestos largos, expansivos, a ver e tocar as formas diariamente. Depois de três anos de suspensão e de uma certa necrose social, está na altura de falarmos sobre o que (nos) aconteceu. Tentamos recuperar o sentido da proporção e da razão ardente para falar daquilo que nos foi proibido, de todo o clima de ameaça e recuperar o sal dos velhos itinerários, fazer o caminho entre as ruínas vivas num...
2023-06-02
2h 39